01 maio, 2020

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 17 Julio Cortázar



AS BOAS CONSCIÊNCIAS
És assim: inteligente, clara, refinada,
vives em harmonia com as pessoas, as coisas e as plantas
que elegeste devagar,
rejeitando sem ruído o que quebrava o ritmo diurno,
a calma das tuas noites.
Isso não significa que ignores este caos,
este fragor de sangue a que chamam século vinte.
Pelo contrário, segues de muito perto
coisas como o racismo, o apartheid e as multinacionais,
o sangue na Argentina no Chile no Paraguai e etcetera.
Todas as tardes às seis compras o Le Monde
E indignas-te sinceramente
porque tudo é violência, violação e mentira
em Dublim em Beirute em Santiago em Banguecoque.
E depois quando vêm a Paulita e o Juan e o Pepe
explicas-lhes com chá e torradas que isto não pode ser,
que como pode ser que isto seja assim, e a mesa
enche-se de protestos democráticos,
de migalhas humanistas e Direitos Humanos (cf. Unesco).
Todos estão de acordo e todos sentem
que estão do lado justo, que é preciso esmagar Pinochet,
mas curiosamente
nem eles nem tu fizeram nunca nada
para ajudar (digamos, deram dinheiro, solidarizaram-se
alguns com as campanhas de jornais),
porque lhes rouba a maior parte do tempo
esmagar o fascismo com perfeitas razões silogísticas
e sentimentos impecáveis.
É evidente que ler Le Monde
já é um combate frente aos que lêem o Figaro.
O importante é saber onde está a verdade
e repeti-lo e repeti-lo todos os dias
aos mesmos amigos no mesmo café.
Quase uma militância ou pouco menos,
quase um perigo porque às tantas
um fascista ouve-te e aí registam-te e pronto.
Oh, querida, já é tarde,
anda dormir, mas antes, claro,
as últimas notícias. Mataram
Orlando Letelier. Que horror, não é?
Isto não pode ser. Esta violência
tem de terminar.
(Toca o telefone é a Paulita
que acaba de saber.)
Dá gosto ver
como tu e a tua gente participam
da história.
Vais dormir tão mal, não é, o melhor é ficar a ouvir música
até que venha o sono dos justos.
.
.........
.
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BLUES FOR MAGGIE
Bem vês
nada é sério nem digno de ser tomado em conta,
a brincar fizemo-nos todo o mal necessário,
bem vês, isto não é uma carta,
demo-nos esse mel da noite, os bares,
o prazer boca abaixo, os cigarros turvos
quando no céu raso treme a luz do alvorecer,
bem vês,
continuo a pensar em ti,
não te escrevo, de repente olho o céu, essa nuvem que passa,
e talvez tu além, no teu cais, olhes uma nuvem
e isso é a minha carta, algo que corre indecifrável e chuva.
A brincar fizemo-nos todo o mal necessário,
o tempo faz o resto, os ursinhos
dormem junto a um esquilo rasgado.
.
Julio Cortázar (Argentina, 1914-1984)
(trad.Cristina Tavares /José Pinto de Sá)

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