03 dezembro, 2015

com a candura de um operário celeste

Não te movas se, de repente,
o Anjo se senta, à tua mesa;
alisa, com vagar, os breves vincos
que a toalha faz, debaixo do teu pão.

Convida-o para a modesta refeição,
que também ele lhe saboreie o gosto,
e possa levar aos lábios impolutos
um pobre copo de uso quotidiano.

Olha em redor, cheio de atenção serena,
com a candura de um operário celeste.
Come como se deve, imitando-te os gestos,
para - como convém - , te construir a casa.


Rainer Maria Rilke, Frutos e Apontamentos (trad. Maria Gabriela Llansol) 


Ann Hamilton

Ann Hamilton, The Event of a Thread, 2012

02 dezembro, 2015

Alexandre O'Neill

Espeta-te com o garfo.
Corta-te com a faca.
Deita-te no prato.
Espera.


Alexandre O'Neill, Anos 70: Poemas Dispersos


29 novembro, 2015

William Blake

William Blake, The Wandering Moon, 1820

as palavras milagrosas

Nesse tempo eu era hóspede da terra.
Deram-me no baptismo o nome – Anna,
O mais doce para os lábios e os ouvidos das pessoas.
Assim fascinada conhecia a alegria terrestre
E contava festas não por doze,
Mas por tantos quantos dias no ano havia.
Obediente a uma imposição misteriosa,
Tendo escolhido um livre companheiro,
Eu amava somente o sol e as árvores.
Certo dia encontrei num verão tardio
Uma estrangeira na hora enleadora da madrugada
E ambas nos banhávamos num mar cálido.
Parecia-me estranha a sua roupa,
Mais estranhos – os lábios, e as palavras –
Como estrelas caíam numa noite de setembro.
E esguia, ela ensinava-me a nadar
Com a sua mão apoiando-me o corpo
Inexperiente nas ondas firmes.
E várias vezes, de pé na água azul,
Ela comigo falava,
E parecia-me que os cimos do bosque
Rumorejam, ou a areia crepita,
Ou com voz de prata a volinka
Ao longe canta a noite das despedidas.
Mas eu não conseguia fixar as suas palavras
E muitas vezes acordava alta noite com uma dor.
Apetecia-me a boca meio aberta,
Os seus olhos e o penteado liso.
Como a celeste mensageiro, implorava
Então à melancólica rapariga:
«Diz-me, diz-me, para quê se apagou a memória
E, com tal tormento acariciando os ouvidos,
Tiraste o deleite da repetição?.»
E apenas uma vez, quando eu colhia
Uvas para um pequeno cesto entrançado,
E a morena estava sentada na relva,
Os olhos fechados e as tranças soltas,
E lânguida e quebrantada
Pelo cheiro dos pesados bagos azul ferrete
E pelo respirar mordente da hortelã, -
Colocou as palavras milagrosas
No tesouro da minha memória.
E deixei cair o cesto cheio,
Colei-me contra a terra seca e abafada,
Como contra o amigo, quando o amor canta.

(Outono 1913)


Anna Akhmatova, Poemas (trad. Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev)

28 novembro, 2015

Uma pequena palha

Nariz e lábios de Akhenaten, 18ª dinastia, Egipto


























SOMBRA

Sempre mais elegante, mais rosada, mais alta que todas,
Para que vens ao de cima do fundo dos anos tombados
E a memória rapace diante mim faz tremular
O teu perfil transparente por trás dos vidros do coche?
Como se discutia nessa altura - tu, anjo ou pássaro!
Uma pequena palha te chamou o poeta.
Para todos por igual através das negras pestanas
Dos olhos em abismo fluía a terna luz.
Oh sombra! Perdoa-me, mas o tempo claro,
Flaubert, a insónia e os lilases tardios
De ti - bela de 1913 - 
E do teu dia indiferente e sem nuvens
Me fizeram lembrar... Mas tais recordações
A mim não me ficam bem. Oh sombra! 


(9 de Agosto de 1940. De noite.)


Anna Akhmatova, Poemas (trad. Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev)

1940

AOS HABITANTES DE LONDRES

O vigésimo quarto drama de Shakespeare
Escreve-o o tempo com mão impassível.
Próprios participantes do terrível banquete,
É melhor Lear, Hamlet, César
Lermos sobre o rio de chumbo;
Hoje é melhor a pobre pomba Julieta
Com cânticos e tochas levar ao caixão,
É melhor espreitar as janelas de Macbeth,
Tremer com o assassino pago, - 
Este, contudo, não, este não, este não,
Este já não conseguimos ter forças para ler.

(1940)


Anna Akhmatova, Poemas (trad. Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev)

Anna Akhmatova

Perdoar-me-ás esses dias de Novembro?
Nos canais que vão ao Neva tremulam as luzes.
Do trágico outono são pobres os esplendores.

(Novembro de 1913, S. Petersburgo)



´´´´´´´


Acordar de madrugada
Pois a alegria sufoca,
E olhar pela vigia
Para as vagas de cor verde,
Ou no convés com mau tempo
Gasalhada em brandas peles,
Ouvir o bater da máquina,
E não pensar em nada,
Mas, pressentindo o encontro
Com esse que se tornou minha estrela,
Pelas gotas salgadas e o vento
Em cada hora rejuvenescer.

(Julho de 1917, Slepnevo)

Anna Akhmatova, Poemas (trad. Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev)




27 novembro, 2015

Ferdinand Hodler

Ferdinand Hodler, Charmed Boy, 1894

25 novembro, 2015

Marina Tsvetáeva

Não verás a visita da noite...
Para sempre, perdoa e adormece
No abrigo a toda a prova
Daquesta luz impossível.

Mas se - não julgues que te ilude
O ouvido! - a que te ama -
Se apartar um pouco, se a noite
For pranto, e a cítara - for peito...

Isso é o meu amante, de louros
Na fronte, que virou os cavalos para fora
Da liça. São ciúmes de Deus
Pela sua favorita.

Marina Tsvetáeva, Depois da Rússia (trad.Nina Guerra e Filipe Guerra)

24 novembro, 2015

Marina Tsvetáeva

Para não me veres - 
Na vida - cinjo-me da cerca
Invisível e penetrante.

Cinjo-me da madressilva,
Cubro-me do algodão da geada.

Para não me ouvires
Na noite - com manha de velha
Me dissimulo - e me protejo.

Cinjo-me do restolhar,
Cubro-me de ramagens. 

Para que não floresças muito
Em mim - nos silvados: enterro-me
Nos livros ainda em vida:

Cinjo-te de fantasias,
Cubro-te de ilusões.


Marina Tsvetáeva, Depois da Rússia (trad.Nina Guerra e Filipe Guerra)

23 novembro, 2015

Man Ray, Paul Eluard1939

22 novembro, 2015

Jacopo Bellini, séc. XV