12 abril, 2020

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 11 Margaret Atwood

O MOMENTO
O momento em que, depois de muitos anos
de trabalho árduo e uma longa viagem
estás de pé no meio do teu quarto,
casa, meio hectare, quilómetro quadrado, ilha, país,
sabendo por fim como lá chegaste,
e dizes, possuo isto,
é o mesmo momento em que as árvores soltam
de ti os braços macios,
os pássaros tomam de volta a sua linguagem,
as falésias racham e colapsam,
o ar reflui de ti como uma vaga
e não consegues respirar.
Não, murmuram. Não possuis nada.
És um visitante, repetidamente,
escalando a colina, plantando a bandeira, proclamando.
Nunca te pertencemos.
Nunca nos encontraste.
Foi sempre ao contrário.


........


UMA VISITA
Longe vão os dias
em que conseguias andar sobre a água.
Em que conseguias andar.
Longe vão os dias.
Só resta um dia,
aquele em que estás.
A memória não é amiga.
Só te consegue dizer
o que já não tens:
uma mão esquerda que consegues usar,
dois pés que caminham.
Todos os artefactos do cérebro.
Olá, olá.
A mão que ainda funciona
agarra-se, não deixa ir.
Aquilo não é um comboio.
Não há grilo nenhum.
Não entremos em pânico.
Falemos de machados,
quais são os bons,
os muitos nomes de madeira.
É assim que se constrói
uma casa, um barco, uma tenda.
Não serve de nada; a caixa de ferramentas
recusa-se a revelar os seus verbos;
a grosa, a plaina, a lima, a sovela,
revertem para metais soturnos.
Reconheces alguma coisa? Disse eu.
Alguma coisa familiar?
Sim, disseste. A cama.
Vale mais olhar o riacho
que corre pelo chão
e é feito de luz do sol,
a floresta feita de sombras;
vale mais olhar a lareira
que agora é uma praia.

Margaret Atwood (Canadá, 1939 - )

(trad. Cristina Tavares/José Pinto de Sá)

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