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18 maio, 2019

Ana Cristina César


Ana Cristina César





















O HOMEM PÚBLICO N. 1

Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda


Ana Cristina César, A Teus Pés, 1982

Ana Cristina César

FLORES DO MAIS

devagar escreva
uma primeira letra
escreva
na imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais


Ana Cristina César, Inéditos e Dispersos, 1998


29 maio, 2018

Karel e Ana Cristina

Karel Appel, Two Large Heads, 1960




Devagar escreva
uma primeira letra
escreva
nas imediações construídas
pelos furacões;


(...)


Ana Cristina César, Inéditos e Dispersos, 1999

05 maio, 2018

FAGULHA


Ana Cristina Cesar










Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando
Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.
Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.
Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.
Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio
Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las
Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.

Ana Cristina Cesar, A Teus Pés, 1982

25 junho, 2017

Ana Cristina César

olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas



Ana Cristina César, Poética

07 julho, 2016

Caravaggio e Ana Cristina

Caravaggio, The Incredulity of Saint Thomas, c.1600-1602




















olho muito tempo o corpo de um poema 
até perder de vista o que não seja corpo 
e sentir separado dentre os dentes 
um filete de sangue 
nas gengivas 

Ana Cristina César, Cenas de Abril


03 julho, 2016

Ana Cristina e Willem



Eu não sabia

que virar pelo avesso

era uma experiência mortal




Ana Cristina César


Willem de Kooning, Two Figures in a Landscape, 1967

02 julho, 2016

Ana Cristina e Robert

Estou atrás

do despojamento mais inteiro
da simplicidade mais erma
da palavra mais recém-nascida
do inteiro mais despojado
do ermo mais simples
do nascimento a mais da palavra

Ana Cristina César

Robert Frank,
US 90, On the road to Del Rio, 1955



22 maio, 2016

orquídeas na folha branca

José Sá, Cristina e as orquídeas da Alex, maio12016































Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera:

mudo convite

tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:

mudo convite

tenho uma vida branca
e limpa à minha espera.



Ana Cristina César

01 fevereiro, 2014

Ana Cristina César
"É sempre mais difícil ancorar um navio no espaço"

Ana Cristina César

Esqueceria outros
pelo menos três ou quatro rostos que amei
num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos


::::::::::::::::

houve um poema
que guiava a própria ambulância
e dizia: não lembro
de nenhum céu que me console,
nenhum,
e saía,
sirenes baixas,
recolhendo os restos das conversas,
das senhoras,
"para que nada se perca
ou se esqueça",
proverbial,
mesmo se ferido,
houve um poema
ambulante,
cruz vermelha
sonâmbula
que escapou-se
e foi-se
inesquecível,
irremediável,
ralo abaixo

::::::::::::::::

Tenho uma folha branca
       e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma cama branca
        e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma vida branca
      e limpa à minha espera


Ana Cristina César