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04 fevereiro, 2016

Ana Hatherly, ainda

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O parque. Atravesso a ponte sobre o lago. De repente um ruído pesado: um ganso atravessa a ponte voando sobre a minha cabeça. Assusto-me. Depois penso: meu Deus os gansos de Selma Lagerloff. A minha infância. A custo reprimo o desespero.


186
A Suécia. Vou a caminho dum jantar de cerimónia. O carro atravessa o bosque. Já é noite. Um gamo surge diante dos faróis. Corre um pouco depois salta para o lado. Pára a olhar-nos. Já dentro de casa olho através da janela. A neve ilumina todo o ar e mesmo o céu recebe o seu reflexo imenso.


Ana Hatherly, 463 tisanas, Quimera, 2006

03 fevereiro, 2016

Ana Hatherly

400
Varsóvia.Quantas árvores tem esta cidade! exclamo surpreendida. Mas logo me explicam: é que no lugar dos escombros da guerra, como não podíamos construir, plantámos árvores. Grande tesouro, respondo impressionada. Passeando pelo imenso parque penso: o tempo revela-esconde tudo de tudo.




405

O problema da visibilidade ou da invisibilidade é uma questão de luz. Quando eu era criança, ao levantar-me tinha começado as minhas orações dizendo: Louvada seja a luz do dia, louvado seja quem a cria. Num dia frio e escuro de Inverno enganei-me e disse: louvada seja a luz eléctrica...Não me deixaram continuar. Sabe-se lá o que iria eu dizer a seguir.


Ana Hatherly, 463 tisanas, Quimera 2006


04 outubro, 2015

A gente
só é dominada por essa gente
quando não sabe que é gente

Ana Hatherly

21 setembro, 2014

187
Estou no hotel e tomo o pequeno almoço na sala. A meu lado está um poeta dinamarquês. Olho através da porta envidraçada que dá para um pequeno cais. Vejo surgir a proa dum enorme barco. Entra pela esquerda do meu campo de visão. Avança lentíssimo e sem qualquer ruído. Olho fascinada a aparição do enorme barco branco. Então dizem-me: vem da Finlândia, chega todos os dias às oito da manhã.

Ana Hatherly, 463 Tisanas

20 abril, 2007

374
Era uma vez uma pessoa que procurava a sabedoria. Tinham-lhe dito que para a atingir tinha sempre de aceitar e recusar ao mesmo tempo tudo o que lhe era oferecido, dito ou mostrado. Quando perguntava por onde era o caminho e lhe diziam "é por ali" ela devia seguir imediatamente nesse sentido e depois no sentido contrário. Tendo assim percorrido todas as direcções indicadas e as não indicadas, sem mais caminhos a percorrer, sentou-se no chão e começou a chorar. Sem saber tinha chegado.

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Num Festival de Poesia. Um poeta laureado recita um poema sobre a famosa história de São Kevin e o melro, que conta como o Santo, por reverência para com a Natureza, sacrificou a sua vida por um pássaro que poisou na sua mão direita, aí fez o seu ninho, pôs os seus ovos e criou os seus filhotes. Quando por fim todos levantaram voo, com o seu braço já transformado num ramo em que a mão se tornara uma haste ressequida, o Santo morre. O seu papel de suporte de vida tinha terminado. Escrevo isto e olho para o meu braço. Na pontas dos dedos da minha mão direita vejo a caneta com que escrevo. É este o meu suporte de vida? Os meus poemas saem dos meus dedos, vão para longe de mim e não voltam.

Ana Hatherly, "463 Tisanas"