OS PRATOS DA BALANÇA
Por entre as rochas um rapaz, nas mãos levando uma balança, avança em direcção ao mar. Vai procurar pesá-lo. Num dos pratos, o mar há-de revolver-se, debater-se, rebentar, há-de trazer à superfície a força das entranhas e atrair o céu, há-de-o fazer precipitar-se até com ele se confundir, e as próprias rochas através das quais o rapaz segue hão-de pesar no prato ferozmente. Imperturbável, o rapaz colocará no outro prato o seu sorriso.
OLHANDO O SOL
Um dia, olhando o sol, deu conta de que nele tinha os ossos mergulhados. Era no entanto impensável proceder a escavações no sol, embora tarde ou cedo a gente acabe por sentir no coração as escavadoras. Dir-se-ia um sol magnético capaz de decidir dos resultados das mais árduas partidas de xadrez. Como se fosse uma das peças, dir-se-ia, ou como se a luz dele recuperasse através deste uma etimologia insuspeitada.
Há quem em si se embrenhe até lhe dar o coração pela cintura – começou ele a escrever então. Como se a espinha do próprio acto de escrever ficasse à mostra, a mão foi-lhe emergindo aos poucos do papel.
Luís Miguel Nava, “Rebentação”
UMA CANDEIA
Poisei na margem desta folha uma candeia, para que se tornassem mais claras as palavras deste texto. Uma candeia também ela feita de palavras e que, contrariamente às aparências, não está na margem mas dispersa nas palavras, de tal forma que, se eu falar das praias, por exemplo, o próprio olhar dos leitores torna visíveis os contornos dos banhistas.
CÉU ÁRIDO
Devemos, ao falar, ter o máximo cuidado com as palavras que empregamos, pois, sendo algumas delas vulneráveis às raízes, arriscamo-nos a ver apoderar-se-nos da fala uma vegetação que talvez chegue mesmo a destruir-nos. A fala quer-se árida, de uma aridez idêntica à da roupa que nos cobre o corpo ou à do céu, de que me esforço, sempre que dele falo, por deixar à mostra um dos agrafos mais profundos.
Luís Miguel Nava, “O Céu Sob as Entranhas”