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01 maio, 2020

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 25 André Breton


GUERRA
Olho a Fera enquanto ela se lambe
Para melhor se confundir com tudo o que a rodeia
Os seus olhos cor de vaga
Inesperadamente são o charco atraindo a si a roupa suja os detritos
Aquele que detém sempre o homem
O charco com a sua pequena Praça da Ópera no ventre
Porque a fosforescência é a chave dos olhos da Fera
Que se lambe
E a sua língua
Lançada nunca se sabe antecipadamente para onde
É uma encruzilhada de fornalhas
De baixo eu contemplo o seu palato
Feito de lâmpadas dentro de sacos
E sob a abóbada azul real
De arcos desdourados em perspetiva um no outro
Enquanto corre o sopro feito da generalização ao infinito daquele desses miseráveis de tronco nu que se exibem na praça pública engolindo archotes com petróleo numa chuva ácida de vinténs
As pústulas da Fera resplandecem dessas hecatombes de jovens de que se empanturra o Número
Os flancos protegidos pelas cintilantes escamas que são os exércitos
Convexos dos quais cada um gira perfeitamente na sua charneira
Embora dependam uns dos outros não menos que os galos que se insultam ao alvorecer de estrumeira a estrumeira
Toca-se na falta de consciência no entanto alguns insistem em sustentar que o dia vai nascer
A porta eu queria dizer a Fera lambe-se debaixo da asa
E vê-se será de rir convulsionarem-se gatunos ao fundo de uma taberna
Essa miragem de que tínhamos feito a bondade pondera-se
É um jazigo de mercúrio
Isso podia bem sorver-se de uma só vez
Acreditei que a Fera se voltava para mim revi a sujidade do relâmpago

André Breton (França, 1896-1966)

trad. Cristina Tavares /José Pinto de Sá

14 dezembro, 2019

André Breton

Numa floresta onde todas as aves são chamas
E também sempre que uma rajada mais violenta faz aparecer na quilha
Uma chaga deslumbrante que atrai as sereias
Não pensava que estivesses no teu posto
E eis que ao romper da aurora num dia de 1937
É extraordinário havia cerca de cem anos que estavas
morto
Ao passar avistei um ramo muito fresco de violetas a teus pés
É raro florirem as estátuas de Paris

André Breton, Ode a Charles Fourier 


Francisco de Zurbarán, Alegoria da Caridade, detalhe, c. 1655

21 março, 2016

Poesia (digo eu)

Tudo leva a crer que existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o que está em cima e o que está em baixo deixam de ser apercebidos contraditoriamente.

André Breton


02 janeiro, 2015

"Querida imaginação, o que mais amo em ti, é que tu não perdoas."

André Breton, Manifesto Surrealista

23 outubro, 2014

Trata-se, sem dúvida, de factos de valor intrínseco pouco controlável, de carácter absolutamente inesperado, violentamente incidente, que pelo género de associações de ideias suspeitas que despertam constituem um modo de nos fazer entrar na teia de aranha, quer dizer, na coisa que seria a mais cintilante e graciosa do mundo se a um canto, ou nas imediações, não estivesse a aranha; de factos que, pertencendo embora à ordem da constatação pura, tomam sempre a aparência de um sinal desconhecido e me obrigam a descobrir, em plena solidão, inverosímeis cumplicidades, convencendo-me estar iludido todas as vezes que me julgo sozinho ao leme do navio.

Nadja, André Breton

(para a bordo)
Por mim continuarei a habitar a minha casa de vidro, onde se pode ver a toda a hora quem vem visitar-me, onde tudo o que está suspenso dos tectos e das paredes perdura como que por encanto, onde repouso à noite entre os lençóis de vidro de uma cama de vidro, onde quem sou me aparecerá, mais tarde ou mais cedo, gravado a diamante.

Nadja, André Breton
Não pratico o culto de Flaubert e contudo se me garantem que, segundo ele próprio confessou, só pretendeu com Salambô, "dar a impressão da cor amarela", com Madame Bovary  "fazer qualquer coisa que fosse da cor do mofo que aparece nos recantos onde há bichos-de-conta", e que o resto lhe era absolutamente indiferente, estas preocupações, em última análise, extraliterárias, dispõem-me em seu favor.

Nadja, André Breton

13 julho, 2014

Aujourd'hui encore je n'attends rien que de ma seule disponibilité, que de cette soif d'errer à la rencontre de tout, dont je m'assure qu'elle me maintient en communication mystérieuse avec les autres êtres disponibles, comme si nous étions appelés à nous réunir soudain. J'aimerais que ma vie ne laissât après elle d'autre murmure que celui d'une chanson de guetteur, d'une chanson pour tromper l'attente. Indépendamment de ce qui arrive, n'arrive pas, c'est l'attente qui est magnifique.
~~

Tourne, sol, et toi, grande nuit, chasse de mon coeur tout ce qui n'est pas la foi en mon étoile nouvelle !
~~

Le choix initial en amour n'est pas réellement permis dans la mesure même où il tend exceptionnellement à s'imposer, il se produit dans une atmosphère de non-choix.


André Breton, L'Amour Fou

05 março, 2014

André Breton por Man Ray, 1935

Uma palavra e tudo está salvo
Uma palavra e tudo está perdido.

André Breton, "O Revólver de Cabelos Brancos"

04 março, 2014

(...)  
O sentido do raio de sol
  O clarão azul que liga as machadadas do lenhador
  O fio do papagaio de papel em forma de coração ou de laço
  O batimento ritmado da cauda dos castores
  A diligência do relâmpago
  O arremesso de confeitos do alto das velhas escadas
  A avalanche

A câmara dos sortilégios
Não cavalheiros não é a oitava Câmara
Nem os vapores da camarata ao domingo à noite

  Os passos de dança transparentes por cima dos mares
  A demarcação na parede dum corpo de mulher ao lançar de punhais
  As claras volutas do fumo
  Os anéis do teu cabelo
  A curva da esponja das Filipinas
  Os nós da serpente vermelha
  A entrada da hera nas ruínas
  Tem todo o tempo à sua frente
  O abraço poético como o abraço carnal
  Enquanto dura
  Impede toda a fugida sobre a miséria do mundo


André Breton, "Poemas"