NOTAS PARA UMA CONCHA
Uma concha é uma coisa pequena, mas posso desmesurá-la recolocando-a onde a
encontrei, poisada na extensão da areia. Porque então apanharei um punhado de
areia e observarei o pouco que me fica na mão depois de quase todo esse punhado
me ter fugido pelo interstício dos dedos, observarei alguns grãos, a seguir
cada um deles, e nenhum desses grãos de areia nesse momento me continuará a
aparecer como uma coisa pequena, e em breve a concha formal, essa concha de
ostra ou essa tiara bastarda, ou esse “canivete”, impressionar-me-á como um
monumento enorme, ao mesmo tempo colossal e precioso, algo como o templo de
Angkor, Saint-Maclou, ou as Pirâmides, com uma significação muito mais estranha
que esses incontáveis produtos de homens.
Se então me vier ao espírito que essa concha, que uma onda do mar pode sem
dúvida recobrir, é habitada por um animal, se eu acrescentar um animal a essa
concha imaginando-a recolocada sob uns centímetros de água, deixo-vos a pensar
quanto crescerá, se intensificará de novo a minha impressão, e se tornará
diferente daquela que pode produzir o mais notável dos monumentos que há pouco
evocava!
(...)
Não sei porquê mas desejaria que o homem, em vez desses enormes monumentos
que apenas testemunham a desproporção gigantesca da sua imaginação e do seu
corpo (ou então dos seus ignóbeis costumes sociais, corporativos), em vez de
essas estátuas à sua escala ou ligeiramente maiores (penso no David de Miguel
Ângelo) que não são senão simples representações de si, esculpisse umas espécies
de nichos, de conchas do seu tamanho, de coisas muito diferentes da sua forma
de molusco mas contudo a ela proporcionadas ( as palhotas negras satisfazem-me
bastante deste ponto de vista), que o homem pusesse o seu cuidado em criar para
as gerações uma morada não muito mais corpulenta que o seu corpo, que todas as
suas imaginações e razões aí estivessem compreendidas, que ele usasse o seu
génio para o ajustamento e não para a desproporção, - ou, pelo menos, que o
génio reconhecesse em si os limites do corpo que o suporta.
Francis Ponge, Alguns Poemas (trad. Manuel Gusmão)