14 dezembro, 2015

Saul e Frederico, outra vez

Saul Leiter, Red Umbrella, c.1958







































As premonições existem em directa
consequência do uso imperfeito de cordas
no coração. Turvados os contornos à retina,
cordas-vocábulo em falso,
cordas-espasmo por cada ofensa,
ei-las, as veias d’aparição.

Frederico Mira George, O Veneno Solitário

13 dezembro, 2015

Saul e Frederico

Saul Leiter, Walk with Soames, 1958


























Na horizontalidade das vésperas, ainda
perdura a clarivisão desse itinerário. «Vou
sentado detrás a ti. Sem murmúrio, sem vulto.
Estanque como um relógio prescrito, reconhecendo
nas palpitações microscópicas dos teus dedos,
uma febre súbita de ceder
e uma última hesitação aplanada no estrado do cais.»


Frederico Mira George, O Veneno Solitário



12 dezembro, 2015

Albert Camus

Cada artista mantém, assim, no fundo de si mesmo, uma fonte única que alimenta durante a sua vida o que ele é e o que diz. Quando a fonte secou, vê-se pouco a pouco a obra endurecer, fender-se. São as terras ingratas da arte que a corrente invisível já não irriga. Com o cabelo raro e seco, o artista, protegido com palha, está maduro para o silêncio, ou para os salões, que vêm a dar ao mesmo. Por mim, sei que a minha fonte está em O Avesso e o Direito, nesse mundo de pobreza e de luz em que vivi por muito tempo e cuja recordação me preserva ainda dos dois perigos contrários que ameaçam todos os artistas: o ressentimento e a satisfação.

André Camus,  O Avesso e o Direito (prefácio)

Alice e Albarrán Cabrera



Alice: Quanto dura o para sempre?

Coelho Branco: Às vezes, só um segundo.


Lewis Carroll, Alice No País das Maravilhas


Albarrán Cabrera, da série This is You, 2015




11 dezembro, 2015

Robert Doisneau

Robert Doisneau,
"La surprenante légéreté d'une momie péruvienne" 
Musée de l'Homme, 1943




08 dezembro, 2015

Francis e Louis

Francis Bacon, Three studies of Muriel Belcher, 1966

























Eu sou o ourives das matérias decadentes, o engastador dos restos sem emprego, ando por aí ao rebusco do cabelo já cortado da Primavera. Aos que peneiram o grão peço a palha, aos da joeira o lodo desdourado. As usuais maneiras da minha linguagem são o cruel cilício das castanhas, a fina pálpebra da fisalite. Andei à cata de caruma, das perdidas penugens, duma data de sementes. De bolores fiz eu colheitas. Tratam-me por tu os líquens.

Louis Aragon, Tratado do Estilo

07 dezembro, 2015

Kirchner

Ernst Ludwig Kirchner, Interieur with two girls, 1926

06 dezembro, 2015

Emily e Cy

Not knowing when the Dawn will come,
I open every Door



Emily Dickinson

Cy Twombly, Peonies, 1980

05 dezembro, 2015

Tu as été le lieu sûr auquel mon regard est resté fixé.

Rainer Maria Rilke, carta a Lou Andreas Salomé

04 dezembro, 2015

(No dia em que se completam 140 anos sobre o nascimento de Rainer Maria Rilke)




















Como reconhecer ainda
o que foi o áureo da vida?
Talvez contemplando, na palma 
da mão, os arabescos

dessas linhas, dessas rugas
que apertamos com tanta garra
quando no vazio fechamos
a própria mão sobre um nada.

Rainer Maria Rilke, Frutos e Apontamentos (trad. Maria Gabriela Llansol)


03 dezembro, 2015

Rilke

Por vezes os amantes, ou aqueles que escrevem,
encontram palavras que, mesmo que se desvaneçam, 
deixam no coração um lugar feliz -    
e um rasto de pensamento para sempre...

Porque, sob o que se passa, nascem
constâncias invisíveis;
sem que abram qualquer trilho,
algumas tornam-se estribilhos de dança.


Rainer Maria Rilke, Frutos e Apontamentos (trad. Maria Gabriela Llansol) 


com a candura de um operário celeste

Não te movas se, de repente,
o Anjo se senta, à tua mesa;
alisa, com vagar, os breves vincos
que a toalha faz, debaixo do teu pão.

Convida-o para a modesta refeição,
que também ele lhe saboreie o gosto,
e possa levar aos lábios impolutos
um pobre copo de uso quotidiano.

Olha em redor, cheio de atenção serena,
com a candura de um operário celeste.
Come como se deve, imitando-te os gestos,
para - como convém - , te construir a casa.


Rainer Maria Rilke, Frutos e Apontamentos (trad. Maria Gabriela Llansol) 


Ann Hamilton

Ann Hamilton, The Event of a Thread, 2012

02 dezembro, 2015

Alexandre O'Neill

Espeta-te com o garfo.
Corta-te com a faca.
Deita-te no prato.
Espera.


Alexandre O'Neill, Anos 70: Poemas Dispersos


29 novembro, 2015

William Blake

William Blake, The Wandering Moon, 1820

as palavras milagrosas

Nesse tempo eu era hóspede da terra.
Deram-me no baptismo o nome – Anna,
O mais doce para os lábios e os ouvidos das pessoas.
Assim fascinada conhecia a alegria terrestre
E contava festas não por doze,
Mas por tantos quantos dias no ano havia.
Obediente a uma imposição misteriosa,
Tendo escolhido um livre companheiro,
Eu amava somente o sol e as árvores.
Certo dia encontrei num verão tardio
Uma estrangeira na hora enleadora da madrugada
E ambas nos banhávamos num mar cálido.
Parecia-me estranha a sua roupa,
Mais estranhos – os lábios, e as palavras –
Como estrelas caíam numa noite de setembro.
E esguia, ela ensinava-me a nadar
Com a sua mão apoiando-me o corpo
Inexperiente nas ondas firmes.
E várias vezes, de pé na água azul,
Ela comigo falava,
E parecia-me que os cimos do bosque
Rumorejam, ou a areia crepita,
Ou com voz de prata a volinka
Ao longe canta a noite das despedidas.
Mas eu não conseguia fixar as suas palavras
E muitas vezes acordava alta noite com uma dor.
Apetecia-me a boca meio aberta,
Os seus olhos e o penteado liso.
Como a celeste mensageiro, implorava
Então à melancólica rapariga:
«Diz-me, diz-me, para quê se apagou a memória
E, com tal tormento acariciando os ouvidos,
Tiraste o deleite da repetição?.»
E apenas uma vez, quando eu colhia
Uvas para um pequeno cesto entrançado,
E a morena estava sentada na relva,
Os olhos fechados e as tranças soltas,
E lânguida e quebrantada
Pelo cheiro dos pesados bagos azul ferrete
E pelo respirar mordente da hortelã, -
Colocou as palavras milagrosas
No tesouro da minha memória.
E deixei cair o cesto cheio,
Colei-me contra a terra seca e abafada,
Como contra o amigo, quando o amor canta.

(Outono 1913)


Anna Akhmatova, Poemas (trad. Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev)

28 novembro, 2015

Uma pequena palha

Nariz e lábios de Akhenaten, 18ª dinastia, Egipto


























SOMBRA

Sempre mais elegante, mais rosada, mais alta que todas,
Para que vens ao de cima do fundo dos anos tombados
E a memória rapace diante mim faz tremular
O teu perfil transparente por trás dos vidros do coche?
Como se discutia nessa altura - tu, anjo ou pássaro!
Uma pequena palha te chamou o poeta.
Para todos por igual através das negras pestanas
Dos olhos em abismo fluía a terna luz.
Oh sombra! Perdoa-me, mas o tempo claro,
Flaubert, a insónia e os lilases tardios
De ti - bela de 1913 - 
E do teu dia indiferente e sem nuvens
Me fizeram lembrar... Mas tais recordações
A mim não me ficam bem. Oh sombra! 


(9 de Agosto de 1940. De noite.)


Anna Akhmatova, Poemas (trad. Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev)