14 março, 2015

Adélia

Era um quintal ensombrado, murado alto de pedras.
As macieiras tinham maçãs temporãs, a casca vermelha
do escuríssimo vinho, o gosto caprichado das coisas
fora de seu tempo desejadas.
Ao longo do muro eram talhas de barro.
Eu comia maçãs, bebia a melhor água, sabendo
que o mundo lá fora havia parado de calor.
Depois encontrei meu pai, que me fez festa
e não estava doente e nem tinha morrido, por isso ria,
os lábios de novo e a cara circulados de sangue,
caçava o que fazer pra gastar sua alegria:
onde está meu formão, minha vara de pescar,
cadê minha binga, meu vidro de café?
Eu sempre sonho que uma coisa gera,
nunca nada está morto.
O que não está vivo, aduba.
O que está estático, espera.

Adélia Prado, Com Licença Poética

13 março, 2015

Hölderlin

Para onde irei eu?
Vivem os mortais
De soldo e trabalho;
Alternando em fadiga e repouso
Tudo se alegra; porque não dorme então
Nunca em meu peito o espinho?

Hölderlin, Poemas, trad. Paulo Quintela
Francis Bacon, auto retrato, 1971

Francis Bacon

Francis Bacon, Auto retrato, 1973 

10 março, 2015

E e E

One need not be a chamber to be haunted.

Não precisamos de ser um quarto para se ser assombrado.


Emily Dickinson trad. © Cristina Tavares, 2015

Ellsworth Kelly, Flower Drawing

07 março, 2015

Cy

David Seidner, secretária de Cy Twombly

06 março, 2015

Be patient – even with chaos.

Lydia Davis

05 março, 2015

Marie Sondergaard Lolk, s/título, 2008

04 março, 2015

jean/hans Arp

Jean (Hans) Arp,
fotografia da colecção de Katherine S. Dreier

03 março, 2015



Jean (Hans) Arp, Around the Sun nº17, 1966

Jean (Hans) Arp, Terrestrial Forms, 1917

Jean (Hans) Arp

Jean (Hans) Arp, Forest, 1916

02 março, 2015

Ode a Walt Witman

(...)
E tu, belo Walt Witman, dorme nas margens do Hudson
com a barba virada ao pólo e as mãos abertas.
Argila branca ou neve, a tua língua chama
camaradas que velem tua gazela sem corpo.
Dorme,não fica nada.
Uma dança de muros agita as pradarias
e a América afoga-se em máquinas e pranto.
Quero que o ar forte da noite mais profunda
tire flores e letras do arco onde dormes
e um garoto negro anuncie aos brancos do oiro
a chegada do reino das espigas.

Federico Garcia Lorca, Poemas, trad. Eugénio de Andrade 

28 fevereiro, 2015

Federico Garcia Lorca, Las Manos Cortadas, 1935-36

Gazel da Morte Sombria

Quero dormir como dormem as maçãs,
afastar-me do tumulto dos cemitérios.
Quero dormir como dorme o garoto
que queria cortar o coração no mar alto.

Não quero que me repitam que os mortos não perdem o sangue;
que a boca podre continua a pedir água.
Não quero saber dos martírios que dá a relva,
nem da lua com boca de serpente
trabalhando antes de amanhecer.

Quero dormir um instante,
um instante, um minuto, um século;
mas que saibam todos que não morri;
que sou o pequeno amigo do vento Oeste,
que sou a sombra imensa de minhas lágrimas.

Cobre-me com um véu pela aurora,
porque me arrojará punhados de formigas, 
molha com água dura os meus sapatos
para que a pinça do seu lacrau resvale.

Quero dormir como dormem as maçãs,
aprender um pranto que me limpe a terra;
quero viver como o garoto sombrio
que no mar alto queria cortar o coração.


Federico Garcia Lorca, Poemas, trad. Eugénio de Andrade

Dois marinheiros na margem

Trouxe no seu coração
um peixe do Mar da China.

Às vezes vê-se passar
diminutos nos seus olhos.

Esquece, sendo marinheiro
os bares e as laranjas.

Olha a água.


Federico Garcia Lorca, Poemas, trad. Eugénio de Andrade

27 fevereiro, 2015

Lorca
























CT, Lorca, 27 fev 2015

quero dormir como dormem as maçãs






CT, "quero dormir como dormem as maçãs", 27 fev 2015

21 fevereiro, 2015

Blaise Cendrars

Depois no fim dum número de dias muito comprido...
Tínhamos mudado de casa
E os poucos quartos do nosso pequeno apartamento
estavam cheios de móveis
Já não estávamos na nossa vivenda da costa
Ficava sozinho dias inteiros
Entre móveis empilhados
Podia mesmo quebrar a loiça
Rasgar os cadeirões
Partir o piano...
Depois no fim dum número de dias muito comprido
Veio uma carta de um dos meus tios
Foi a derrocada do Panamá que fez de mim um poeta!


Blaise Cendrars, Poesia em Viagem, trad.Liberto Cruz

20 fevereiro, 2015

Philip Levine

Pequeno Villon

Diz-me ele que em Banguecoque o roubam
Por ser branco; em Londres porque é preto;
Em Barcelona, judeu; em Paris, árabe:
Em todo o lado & a qualquer hora, & ele defende-se.

Ergue sete dedos grossos e pequenos
Para me mostrar que vem em sétimo lugar a nível mundial,
E não há qualquer paixão na sua voz, nem raiva
No liso dos olhos castanhos raiados de sangue.

Pede-me que lhe conte tudo o que me lembrar
Do meu pai, seu tio; fala da guerra
No Norte de África e do que veio depois,
A perda do pai, a perda do irmão,

As montras da padaria partidas, e o pão fresco
Polvilhado de vidro, o cheiro quente a centeio,
Tão forte que ele comia até ficar com a boca cheia de sangue.
Eles vivem aqui, vivem aqui e não morrem,

E aponta a cabeça negra sulcada
De anéis de cabelo preto. Toca-me o cabelo,
Diz-me para nunca desprezar
As duras cerdas que protegem a cabeça do lutador.

De dedos tristes, percorre-me a cara,
Como sou claro, diz-me, e macio.
Ficámos de pé até ao fim desta primeira e última visita.
Duro, 50 quilos, um metro e meio,

Não era maior que uma rapariga, agarra-me pelos ombros,
Beija-me na boca, os olhos ainda abertos,
Meu irmão imaginário, meu primo,
Eu próprio de outra forma, por toda a sua dor.

Philip Levine, Not This Pig, 1968

(Tradução de Hugo Pinto Santos)