01 maio, 2007
29 abril, 2007
25 abril, 2007
20 abril, 2007
374
Era uma vez uma pessoa que procurava a sabedoria. Tinham-lhe dito que para a atingir tinha sempre de aceitar e recusar ao mesmo tempo tudo o que lhe era oferecido, dito ou mostrado. Quando perguntava por onde era o caminho e lhe diziam "é por ali" ela devia seguir imediatamente nesse sentido e depois no sentido contrário. Tendo assim percorrido todas as direcções indicadas e as não indicadas, sem mais caminhos a percorrer, sentou-se no chão e começou a chorar. Sem saber tinha chegado.
396
Num Festival de Poesia. Um poeta laureado recita um poema sobre a famosa história de São Kevin e o melro, que conta como o Santo, por reverência para com a Natureza, sacrificou a sua vida por um pássaro que poisou na sua mão direita, aí fez o seu ninho, pôs os seus ovos e criou os seus filhotes. Quando por fim todos levantaram voo, com o seu braço já transformado num ramo em que a mão se tornara uma haste ressequida, o Santo morre. O seu papel de suporte de vida tinha terminado. Escrevo isto e olho para o meu braço. Na pontas dos dedos da minha mão direita vejo a caneta com que escrevo. É este o meu suporte de vida? Os meus poemas saem dos meus dedos, vão para longe de mim e não voltam.
Ana Hatherly, "463 Tisanas"
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18 abril, 2007
17 abril, 2007
O Catador
Um homem catava pregos no chão.
Sempre os encontrava deitados de comprido,
ou de lado,
ou de joelhos no chão.
Nunca de ponta.
Assim eles não furam mais - o homem pensava.
Eles não exercem mais a função de pregar.
São patrimónios inúteis da humanidade.
Ganharam o privilégio do abandono.
O homem passava o dia inteiro nessa função de catarpregos enferrujados.
Acho que essa tarefa lhe dava algum estado.
Estado de pessoas que se enfeitam a trapos.
Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser.
Garante a soberania de Ser mais do que Ter.
Manoel de Barros, "Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo"
Um homem catava pregos no chão.
Sempre os encontrava deitados de comprido,
ou de lado,
ou de joelhos no chão.
Nunca de ponta.
Assim eles não furam mais - o homem pensava.
Eles não exercem mais a função de pregar.
São patrimónios inúteis da humanidade.
Ganharam o privilégio do abandono.
O homem passava o dia inteiro nessa função de catarpregos enferrujados.
Acho que essa tarefa lhe dava algum estado.
Estado de pessoas que se enfeitam a trapos.
Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser.
Garante a soberania de Ser mais do que Ter.
Manoel de Barros, "Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo"
30 março, 2007
27 março, 2007
23 março, 2007
21 março, 2007
"(...)
- O barulho do mar e do vento. A montanha, a ideia da montanha impraticável. E depois a terra arenosa por ali fora. E a solidão. E sentir sobretudo que já não pode haver medo. Fecho as portas da casa, a porta de saída e as portas dos quartos entre si. E fico no quarto sem soalho e deito-me no chão. Ouço o mar e o vento à frente e atrás da montanha solitária e poderosa. Depois encosto a cara à terra profundíssima para escutar o seu húmido susurro atravessando-a toda e passando por mim. E então poderei morrer."
Herberto Helder, "Os Passos em Volta"
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18 março, 2007
(...)
Mas em Amsterdão nem sequer existia a rua que o meu amigo tinha indicado e claro, nunca houve em qualquer parte da terra um homem chamado Max Hughes que conseguisse embarcar gente para Singapura. Às vezes chego a pensar que não existe nenhuma cidade com tal nome. mas não é nem nunca foi essencial. A comoção e a esperança, sim, essas existem, e são o tema dos nossos dons, a nossa tarefa. E é nelas próprias que o milagre do mundo pode ser concebido.
Herberto Helder, "Os Passos em Volta"
17 março, 2007
(...) Contaram-me que ele tinha uma alegria tão grande que não podia agarrar num copo: quebrava-o com a força dos dedos, com a grande força da sua alegria. Era uma criatura excepcional. Depois foi-se embora, e até já desconfiavam dele, e embarcou, e talvez não houvesse lugar na terra para ele. E onde está? Mas era uma alegria bárbara, uma vocação terrível. Partiu. E agora chove, e vamos para casa, e tomamos chá, e comemos aqueles bolos de que tu gostas tanto. E depois, e depois? Ele era belo e tremendo, com aquela sua alegria, e não tinha medo, e só a vibração interior da sua alegria fazia com que os copos se quebrassem entre os dedos. Foi-se embora."
Herberto Helder, "Os Passos em Volta"
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16 março, 2007
15 março, 2007
12 março, 2007
10 março, 2007
05 março, 2007
18 fevereiro, 2007
Vilma Celmins , S/título, 2005
arte de inventar personagens
Pomo-nos bem de pé, com os braços muito abertos
e olhos fitos na linha do horizonte
Depois chamamo-los docemente pelos seus nomes
e os personagens aparecem
Mário Cesariny, "Manual de Prestidigitação"
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V
14 fevereiro, 2007
05 fevereiro, 2007
04 fevereiro, 2007
pedir a um homem que nunca se distraia
Henryk Hermanowicz, "Mulher Com Olhos Fechados",1937
Sentir a justiça de um texto muito antes de ter compreendido o seu significado, graças àquele puro timbre que pertence apenas ao estilo mais nobre: o qual por sua vez nasce da justiça.
(...)
Não conheço poesia universal sem uma raiz bem precisa: uma fidelidade, um retorno.
(...)
(...)
Não conheço poesia universal sem uma raiz bem precisa: uma fidelidade, um retorno.
(...)
na poesia, a imagem preexiste à ideia que passa por dentro dela. Durante anos ela pode seguir um poeta, doméstica e fabulosa, familiar e inquietante, com frequência uma imagem da primeira infância, o nome estranho de uma árvore, a insistência de um gesto. Espera com impaciência que a preencha a revelação.
(...)
A atenção é o único caminho para o inexprimível
(...)
Pedir a um homem que nunca se distraia, que se subtraia sem descanso ao equívoco da imaginação, à preguiça do hábito, à hipnose do costume, a sua faculdade de atenção, é pedir-lhe que actue na sua máxima força.
É pedir-lhe uma coisa próxima da santidade numa época que parece procurar apenas, com cega fúria e arrepiante sucesso, o divórcio total da mente humana em relação à sua faculdade de atenção.
(...)
A atenção é o único caminho para o inexprimível
(...)
Pedir a um homem que nunca se distraia, que se subtraia sem descanso ao equívoco da imaginação, à preguiça do hábito, à hipnose do costume, a sua faculdade de atenção, é pedir-lhe que actue na sua máxima força.
É pedir-lhe uma coisa próxima da santidade numa época que parece procurar apenas, com cega fúria e arrepiante sucesso, o divórcio total da mente humana em relação à sua faculdade de atenção.
Cristina Campo, “Os Imperdoáveis”
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