11 setembro, 2013

"Noites e noites a fio, quase de madrugada, desenrolava-se a mesma cena: um grande automóvel preto - um carro americano de antes da guerra, talvez um De Soto dos anos trinta - parava de repente ao pé de mim. O motorista, fardado de negro, mantinha-se muito hirto no seu lugar; eu não chegava sequer a ver-lhe o rosto. Mais me intrigava aliás o próprio carro, que parecia ter estado debaixo de água - ou ter sido fabricado no fundo do mar -, embora não apresentasse, na carroçaria, nenhum vestígio de humidade. Mas o capot faiscava, na sombra, como o dorso de um cetáceo; o flanco fusiforme dos faróis denunciava não sei que secreto comércio com os peixes; e a porta de trás, que vinha agora de entreabrir-se - sem que ninguém lhe houvesse tocado - evocava irresistivelmente, pelo crebo palpitar em que ficara, o inquietante mistério de uma guelra."


Primeiras linhas de
"Os Amantes e Outros Contos"
David Mourão-Ferreira
Editorial Presença, 1989

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