25 setembro, 2013

"Há um direito que só muito poucos intelectuais cuidam de reivindicar: o direito à errância, à vagabundagem.
E, no entanto, a vagabundagem é a emancipação, e a vida ao longo das estradas, a liberdade.
Romper corajosamente um dia com todos os entraves que a vida moderna e a fraqueza do nosso coração, a pretexto de liberdade, fizeram pesar sobre os nossos movimentos, pegar no bordão e no alforge simbólicos e partir!
Para quem conhece o valor e também o delicioso sabor da liberdade solitária (porque apenas sós somos livres), não há acto mais corajoso nem mais belo do que o da partida."


Primeiras linhas de
"Escritos no Deserto"
Isabelle Eberhardt
trad. Miguel Serras Pereira
Relógio d'Água, 1990

24 setembro, 2013

"Não tendo outra alternativa, o sol brilhava sobre o nada de novo.
Murphy estava, como se fosse livre, sentado ao abrigo dos raios, no pátio do Menino Jesus, em West Brompton, Londres. Aí, durante meses, talvez anos, tinha comido, bebido, dormido, tinha-se vestido e despido, numa gaiola de tamanho médio exposta ao noroeste."


Primeiras linhas de
"Murphy"
Samuel Beckett
trad. de José Manuel Simões
Editorial Presença, 1961

23 setembro, 2013

"Ela sai apressadamente de casa, com um casaco pesado demais para o tempo que estava. É o ano de 1941. Começou outra guerra. Deixou um bilhete para Leonard e outro para Vanessa. Caminha decididamente em direcção ao rio, segura do que vai fazer, mas, mesmo assim, mesmo neste momento, sente-se quase absorta com a vista das colinas, da igreja e de um grupo disperso de ovelhas, incandescentes, levemente coloridas por uma pálida tonalidade de enxofre, pastando sob um céu que escurece. Detêm-se a observar as ovelhas e o céu e depois continua a andar."


Primeiras linhas de 
"As Horas"
Michael Cunningham
trad. de Fernanda Pinto Rodrigues
Gradiva, 2003

22 setembro, 2013

"Nunca tive um rosto bonito. A mocidade é que fazia de beleza. A estrutura óssea é boa. Mas a carne, por cima dela, organiza-se mal. Além disso o esqueleto altera-se com o tempo, e estraga-se."


Primeiras linhas de 
"Toro - Ritual de Amor e Morte"
Jean Cocteau
trad. de Aníbal Fernandes
Hiena Editora, 1987

21 setembro, 2013

"A 3 de Junho de 1995, no dia seguinte a ter sido notificado com um mandato de execução, recebi um "processo de má fé" por prática activa de um trabalho ou de uma profissão", nomeadamente a de jornalista. O Estado acusa-me de ter escrito o que vocês estão neste momento a ler e ameaçaram punir-me por ter tido a ousadia de dizer e escrever a verdade - enquanto eu me encontro na mais severa secção prisional autorizada pelo Estado
Que delito constitucional cometi eu? O meu livro Live from the Death Row. Ele dá uma imagem pouco elogiosa de um sistema carcerário que se auto-intitula "correccional", mas que mais não faz do que corromper as almas humanas; um sistema que engole centenas de milhões de dólares para torturar, estropiar e mutilar dezenas de milhares de homens e mulheres, um sistema que gera o rancor e o ódio.
Na verdade, o que o governo deseja não é somente a morte, é também o silêncio - um detido "correcto" é aquele que se cala."


Primeiras linhas de
"A Morte em Flor"
Mumia Abu-Jamal
trad.de Joana Caspurro, Jorge Pinho e José António Remelhe
Campo das Letras, 1999

20 setembro, 2013

"Acabo de visitar o meu senhorio: o meu vizinho solitário, o único que tenho neste ermo a que me abriguei. Isto é uma região admirável. Não se poderia encontrar em toda a Inglaterra sítio mais afastado do bulício do mundo. Um verdadeiro éden para misantropos. E eu e o Sr. Heathcliff estamos talhados para dividir entre nós toda esta solidão.Excelente sócio! Mal sabe quanto me senti atraído para ele no momento em que, parando a montada, lhe vi os olhos pretos e suspeitosos, de cenho carregado, e quando, na ocasião de me apresentar, percebi que escondia mais os dedos nos bolsos do colete."


Primeiras linhas de
"O Monte dos Vendavais"
Emily Bronte
trad. Maria Franco e Cabral do Nascimento
Publicações Europa-América, 1993

19 setembro, 2013

"Dada é a nossa intensidade: que ergue as baionetas sem consequência a cabeça sumatral do bebé alemão; Dada é a vida sem pantufas nem paralelos; que é contra e a favor da unidade e decididamente contra o futuro; sabemos sabiamente que os nossos cérebros se hão-de tornar almofadas macias, que o nosso antidogmatismo é tão exclusivista como o funcionário e que não somos livres e gritamos liberdade, necessidade severa sem disciplina nem moral e cuspimos na humanidade."


Primeiras linhas de
"Sete Manifestos Dada"
Tristan Tzara
trad. José Miranda Justo
Hiena Editora, 1987

17 setembro, 2013

"Contra o seu costume, Albano viera tarde e entrara sem os cuidados tidos nas outras noites, quando queria abafar rumores; logo, porém, volvera às precauções de sempre. Era preciso que ela não desconfiasse! Cerrou, vagarosamente, a porta e, no velho bengaleiro, dependurou o chapéu. Na casa havia silêncio e nenhuma outra luz além da que ele acendera no corredor. Começou a andar sobre a ponta dos sapatos, cada vez mais cauteloso. Cecília já dormia quando ele chegou ao quarto. O seu primeiro ímpeto foi matá-la imediatamente, mas conteve-se."


Primeiras linhas de 
"A Tempestade"
Ferreira de Castro
Guimarães & Cª., 1950

16 setembro, 2013

"Hoje não fui à escola. Isto é, fui, mas só para pedir ao director de turma que me deixasse voltar para casa. Entreguei-lhe a carta do meu pai, na qual solicitava a minha dispensa, alegando "razões familiares". Perguntou que razões familiares eram essas. Disse-lhe que o meu pai tinha sido convocado para um campo de trabalho; e não levantou mais dificuldades."


Primeiras linhas de 
"Sem Destino"
Imre Kertész
Trad. Ernesto Rodrigues
Editorial Presença, 2003 

15 setembro, 2013

"MAX: Em boa verdade, Anatol, invejo-te...
ANATOL (sorri)
MAX: Bem, é preciso que te diga, eu fiquei sem pinga de sangue. Pois que até aqui pensei que tudo fosse uma fantasia. Mas quando eu vi...como ela adormeceu diante dos meus olhos...como ela dançou, quando lhe disseste que era uma bailarina, e como ela chorou, quando lhe disseste que o amante tinha morrido, e como ela perdoou a um criminoso, quando a fizeste rainha..."


Primeiras linhas de 
"Anatol"
Arthur Schnitzler
trad. Ludwig Scheidl
Livraria Estante Editora, 1986

14 setembro, 2013

"Se estão mesmo interessados nisto, então a primeira coisa que devem querer saber é onde nasci, e como foi a porcaria da minha infância, o que faziam os meus pais e tudo antes de eu ter nascido, e toda essa treta estilo David Copperfield, mas não estou nada para aí virado, para dizer a verdade."

Primeiras linhas de
"À Espera no Centeio"
J.D. Salinger
trad. José Lima
Quetzal, 2011

12 setembro, 2013

"O que eu faço é só, só isto: tentar escrever sobre o que observo. Sou um pouco como um detective. Também não me falta compaixão pela condição humana. Procuro conferir uma certa dignidade a todas as situações que descrevo e às pessoas sobre quem escrevo. Mas, frequentemente, a inspiração para uma canção não tem nada a ver com o que descrevo dela. As histórias não são mais do que uma metáfora para qualquer coisa de que quero falar. Sou um "songwriter", não um jornalista. Cito imensos locais e nomes mas, geralmente, são apenas metáforas para algo de diferente."


Primeiras linhas de
"Nocturnos"
Tom Waits
trad. João Lisboa
Assírio e Alvim,1989

11 setembro, 2013

"Noites e noites a fio, quase de madrugada, desenrolava-se a mesma cena: um grande automóvel preto - um carro americano de antes da guerra, talvez um De Soto dos anos trinta - parava de repente ao pé de mim. O motorista, fardado de negro, mantinha-se muito hirto no seu lugar; eu não chegava sequer a ver-lhe o rosto. Mais me intrigava aliás o próprio carro, que parecia ter estado debaixo de água - ou ter sido fabricado no fundo do mar -, embora não apresentasse, na carroçaria, nenhum vestígio de humidade. Mas o capot faiscava, na sombra, como o dorso de um cetáceo; o flanco fusiforme dos faróis denunciava não sei que secreto comércio com os peixes; e a porta de trás, que vinha agora de entreabrir-se - sem que ninguém lhe houvesse tocado - evocava irresistivelmente, pelo crebo palpitar em que ficara, o inquietante mistério de uma guelra."


Primeiras linhas de
"Os Amantes e Outros Contos"
David Mourão-Ferreira
Editorial Presença, 1989

08 setembro, 2013

"Parece-me muito bem que o romancista descanse de vez em quando da escrita de ficção. É terrível ter de escrever um romance por ano, como acontece a muitos autores, para ganharem a vida ou para não serem esquecidos, caso se mantenham em silêncio. Por muito fértil que seja a sua imaginação, é pouco provável que se consigam lembrar sempre de um tema tão premente que se torne impossível deixar de escrever sobre ele. É igualmente pouco provável que consigam criar personagens diferentes e cheias de vida, que nunca tenham usado antes. Se tiverem o dom dos contadores de histórias talvez consigam produzir uma obra de ficção aceitável, mas só com muita sorte será mais do que isso. Todas as obras de um autor deviam registar uma aventura espiritual do mesmo. Este meu conselho é de perfeccionismo."


Primeiras linhas de
Um Gentleman na Ásia
trad. Raquel Mouta
Tinta da China, 2013

07 setembro, 2013

"Ousaria Tchen erguer o mosquiteiro? Agiria através dele? A angústia apertava-lhe o estômago; conhecia a sua própria firmeza, mas não conseguia nesse momento pensar nela senão com pasmo, fascinado por aquele amontoado de musselina branca que caía do tecto sobre um corpo menos visível que uma sombra, e do qual apenas saía aquele pé meio inclinado pelo sono, vivo contudo - carne de homem. A única luz vinha do edifício vizinho: um grande rectângulo de electricidade pálida, cortada pelos pinásios da janela, um dos quais listrava a cama e a vida. Quatro ou cinco buzinas chiaram ao mesmo tempo. Descoberto? Combater inimigos que se defendem, inimigos acordados, que alívio!"


Primeiras linhas de 
A Condição Humana
André Malraux
trad. Jorge de Sena
Livros do Brasil, s/d

06 setembro, 2013

" A cotovia é uma ave da qual se diz que, sendo levada à presença de um enfermo, se o dito enfermo deve morrer esta ave volta a cabeça para o lado contrário e nunca o olha; e se esse enfermo deve salvar-se, a ave nunca o abandona de vista, o que aliás é causa de lhe passar toda a doença."


Primeiras linhas de
Bestiário, Fábulas e outros Escritos
Leonardo Da Vinci
trad. José Colaço Barreiros
Assírio e Alvim, 1995

05 setembro, 2013

" Aquela era a Miss Snowdie MacLain.
Veio buscar a manteiga dela. Não me deixa ir lá levá-la; é só atravessar a estrada, um pulinho. Um belo dia, o marido saiu de casa e deixou o chapéu nas margens do rio Big Black... E isso podia ter levantado um grande pé-de-vento.
As coisas podiam ter começado a mexer aqui em Morgana, se a gente quisesse. Os macacos de imitação podiam sempre lembrar-se de copiar o King. Ora o King MacLain deixou um chapéu de palha novo nas margens do Big Black, e há quem diga que ele foi para o Oeste."


Primeiras linhas de 
"As Maçãs Douradas"
Eudora Welty
trad. Diana V. Almeida
Antígona Editores Refractários, 2013

04 setembro, 2013

" No dia 30 de Abril de 1940, o Hauptsturmfuhrer (capitão) das SS Rudolf Hess realizou uma grande ambição. Aos 39 anos, e após 6 anos ao serviço das SS, fora nomeado comandante de um dos primeiros campos de concentração nazi no Novo Reich. Nesse dia de Primavera, ele chegou para assumir os seus deveres numa pequena cidade que, até oito meses antes, pertencera ao Sudoeste da Polónia e agora fazia parte da Alta Silésia alemã. O nome da cidade, em polaco, era Oswiecim - em alemão, Auschwitz.
Embora Hoess tivesse sido promovido a comandante, o campo que que viria comandar ainda não existia. Tinha de supervisionar a sua construção a partir de um conjunto de barracas do Exército polaco, delapidadas e infestadas de bicharada, que se agrupavam à volta de um campo para o treino de cavalos, na periferia da cidade. E a área circundante dificilmente podia ser mais deprimente. Esta terra, entre os rios Sola e Vístula, era plana e parda; o clima, húmido e doentio."


Primeiras linhas de
Auschwitz - Os Nazis e a Solução Final
Laurence Rees
Publicações D. Quixote, 2005

03 setembro, 2013

"Antes de encetar a descrição dos estranhos acontecimentos ocorridos em a nossa cidade, que até aí nada apresentara que distinguisse, vejo-me compelido, dada a minha insuficiência de narrador, a começar por alguns pormenores biográficos acerca do nosso talentoso e mui digno Estêvão Trophimovich Verkovenski. Que esses pormenores sirvam de intróito à presente crónica; e quanto à história que me proponho contar, achá-la-eis mais adiante.
É mister dizer que Estêvão Trophimovich desempenhara sempre, entre nós, papel especial - cívico, por assim dizer - e que punha nele a maior paixão, a ponto de não poder viver sem isso. Não quero, todavia, sugerir que o devamos comparar a um actor de teatro. Deus me defenda de tal coisa, tanto mais que o estimo profundamente."


Primeiras linhas de 
Os Possessos
Dostoievsky
versão Maria Franco
Editorial Minerva, s/d

02 setembro, 2013

"- TOM!
Ninguém respondeu.
- Tom!
Nada,
- Sempre gostava de saber onde se meteu aquele rapaz. Tom!
Silêncio absoluto.
A velhota puxou os óculos para baixo e, por cima deles, olhou o quarto em volta; tornou a puxá-los para cima e olhou através deles. Raras vezes (ou nunca) procurava de óculos uma coisa tão pequena como um rapaz"


Primeiras linhas de
"As aventuras de Tom Sawyer"
Mark Twain
trad. Luíza Derovet e Eugénio Baptista de Castro
Bertrand, 2011