01 outubro, 2013

"O Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum, mas eram enormes e estavam sempre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho. Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem dizer."


Primeiras linhas de
"Nós Matámos o Cão-Tinhoso"
Luís Bernardo Honwana
Edições Afrontamento, 1988

30 setembro, 2013

"Alice estava a começar a ficar farta de estar sentada ao lado da irmã na margem do rio e de não ter nada que fazer: já tinha dado uma olhadela, uma vez por outra, ao livro que a irmã estava a ler, mas este não tinha ilustrações nem diálogos. "E para que serve um livro", pensou ela, "se não tem bonecos nem diálogos?"
Por isso ela estava a tentar decidir, da melhor forma que podia (pois o calor fazia-a sentir-se muito ensonada e estúpida), se o prazer de fazer uma coroa de margaridas valia a maçada de se levantar e de ir apanhá-las, quando, de repente, um Coelho Branco com olhos cor-de-rosa apareceu a correr ao lado dela."


Primeiras linhas de 
"Alice no País das Maravilhas"
trad. Vera Azancot
Biblioteca Visão, 2000

29 setembro, 2013

"Um grito esfarpado encheu a cadeia.
Num sobressalto, o rapaz ergueu-se da sonolência em que jazia sôbre a tarimba e foi até às grades. Alquebrado de torpor, a princípio nada compreendeu. Viu, confusamente, os canteiros cheios de flores, as árvores e, para lá do jardim, o edifício amarelado dos Paços do Concelho.
Mas o grito ainda ecoava; morria aflito e longo. Sentiu os homens agitarem-se na cela comum do rés-do-chão e, perto, soltou-se uma voz lamentosa e resignada:
- Cala-te, Dòninha! "



Primeiras linhas de
"Cerromaior"
Manuel da Fonseca
Editorial Inquérito, 1943

28 setembro, 2013

"Perfumava o atelier um delicioso aroma de rosas, e, quando a leve brisa estival sacudia as árvores do jardim, sentia-se através da porta aberta a fragância pesada do lilás ou o perfume mais delicado do espinheiro cor-de-rosa.
Do canto do divã persa em que estava estendido, fumando, como tinha por hábito, inúmeros cigarros, Lorde Henrique Wotton o mais que podia com o olhos abranger era um codesso de flores cor de mel, cujos ramos trémulos pareciam mal poder com o peso duma beleza tão etérea e subtil; e, de quando em quando, as fantásticas sombras de aves cruzavam as cortinas de seda que guarneciam a enorme janela, produzindo como um momentâneo efeito japonês e fazendo-o pensar nesses pálidos pintores de Tóquio que, por meio duma arte que é necessariamente imóvel, procuram dar a sensação da ligeireza e do movimento."


Primeiras linhas de 
"O Retrato de Dorian Gray"
Oscar Wilde
trad. Januário Leite
Círculo dos Leitores,1990

27 setembro, 2013

"No jardim zoológico de Berlim, ao lado da piscina que contém a morsa viva, há uma exposição invulgar. Num mostruário de vidro, estão todas as coisas encontradas no estômago de Roland, a Morsa, que morreu a 21 de Agosto de 1961. Ou, mais precisamente:"


Primeiras linhas de 
"O Museu da Rendição Incondicional"
Dubravka Ugressic
trad. Sofia Castro Rodrigues
Cavalo de Ferro, 2011

26 setembro, 2013

"O velho Dudley deixou-se cair na cadeira que, pouco a pouco, moldava de acordo com as formas do seu corpo e olhou pela janela, a cinco metros de si, para dentro de outra janela emoldurada por tijolos vermelhos enegrecidos. Estava à espera do gerânio. Punham-no ao sol todos os dias por volta das dez da manhã e recolhiam-no às cinco e meia da tarde. Na terra dele, a Srª Carson tinha um gerânio à janela. Na terrinha havia gerânios com fartura, gerânios a sério, não há dúvida nenhuma, pensou o Velho Dudley, não são estes estafermos cor-de-rosa desmaiada com laços verdes, de papel."


Primeiras linhas de 
"O Gerânio - Contos Dispersos"
Flannery O'Connor
trad.de Luís Coimbra
Cavalo de Ferro, 2010

25 setembro, 2013

"Há um direito que só muito poucos intelectuais cuidam de reivindicar: o direito à errância, à vagabundagem.
E, no entanto, a vagabundagem é a emancipação, e a vida ao longo das estradas, a liberdade.
Romper corajosamente um dia com todos os entraves que a vida moderna e a fraqueza do nosso coração, a pretexto de liberdade, fizeram pesar sobre os nossos movimentos, pegar no bordão e no alforge simbólicos e partir!
Para quem conhece o valor e também o delicioso sabor da liberdade solitária (porque apenas sós somos livres), não há acto mais corajoso nem mais belo do que o da partida."


Primeiras linhas de
"Escritos no Deserto"
Isabelle Eberhardt
trad. Miguel Serras Pereira
Relógio d'Água, 1990

24 setembro, 2013

"Não tendo outra alternativa, o sol brilhava sobre o nada de novo.
Murphy estava, como se fosse livre, sentado ao abrigo dos raios, no pátio do Menino Jesus, em West Brompton, Londres. Aí, durante meses, talvez anos, tinha comido, bebido, dormido, tinha-se vestido e despido, numa gaiola de tamanho médio exposta ao noroeste."


Primeiras linhas de
"Murphy"
Samuel Beckett
trad. de José Manuel Simões
Editorial Presença, 1961

23 setembro, 2013

"Ela sai apressadamente de casa, com um casaco pesado demais para o tempo que estava. É o ano de 1941. Começou outra guerra. Deixou um bilhete para Leonard e outro para Vanessa. Caminha decididamente em direcção ao rio, segura do que vai fazer, mas, mesmo assim, mesmo neste momento, sente-se quase absorta com a vista das colinas, da igreja e de um grupo disperso de ovelhas, incandescentes, levemente coloridas por uma pálida tonalidade de enxofre, pastando sob um céu que escurece. Detêm-se a observar as ovelhas e o céu e depois continua a andar."


Primeiras linhas de 
"As Horas"
Michael Cunningham
trad. de Fernanda Pinto Rodrigues
Gradiva, 2003

22 setembro, 2013

"Nunca tive um rosto bonito. A mocidade é que fazia de beleza. A estrutura óssea é boa. Mas a carne, por cima dela, organiza-se mal. Além disso o esqueleto altera-se com o tempo, e estraga-se."


Primeiras linhas de 
"Toro - Ritual de Amor e Morte"
Jean Cocteau
trad. de Aníbal Fernandes
Hiena Editora, 1987

21 setembro, 2013

"A 3 de Junho de 1995, no dia seguinte a ter sido notificado com um mandato de execução, recebi um "processo de má fé" por prática activa de um trabalho ou de uma profissão", nomeadamente a de jornalista. O Estado acusa-me de ter escrito o que vocês estão neste momento a ler e ameaçaram punir-me por ter tido a ousadia de dizer e escrever a verdade - enquanto eu me encontro na mais severa secção prisional autorizada pelo Estado
Que delito constitucional cometi eu? O meu livro Live from the Death Row. Ele dá uma imagem pouco elogiosa de um sistema carcerário que se auto-intitula "correccional", mas que mais não faz do que corromper as almas humanas; um sistema que engole centenas de milhões de dólares para torturar, estropiar e mutilar dezenas de milhares de homens e mulheres, um sistema que gera o rancor e o ódio.
Na verdade, o que o governo deseja não é somente a morte, é também o silêncio - um detido "correcto" é aquele que se cala."


Primeiras linhas de
"A Morte em Flor"
Mumia Abu-Jamal
trad.de Joana Caspurro, Jorge Pinho e José António Remelhe
Campo das Letras, 1999

20 setembro, 2013

"Acabo de visitar o meu senhorio: o meu vizinho solitário, o único que tenho neste ermo a que me abriguei. Isto é uma região admirável. Não se poderia encontrar em toda a Inglaterra sítio mais afastado do bulício do mundo. Um verdadeiro éden para misantropos. E eu e o Sr. Heathcliff estamos talhados para dividir entre nós toda esta solidão.Excelente sócio! Mal sabe quanto me senti atraído para ele no momento em que, parando a montada, lhe vi os olhos pretos e suspeitosos, de cenho carregado, e quando, na ocasião de me apresentar, percebi que escondia mais os dedos nos bolsos do colete."


Primeiras linhas de
"O Monte dos Vendavais"
Emily Bronte
trad. Maria Franco e Cabral do Nascimento
Publicações Europa-América, 1993

19 setembro, 2013

"Dada é a nossa intensidade: que ergue as baionetas sem consequência a cabeça sumatral do bebé alemão; Dada é a vida sem pantufas nem paralelos; que é contra e a favor da unidade e decididamente contra o futuro; sabemos sabiamente que os nossos cérebros se hão-de tornar almofadas macias, que o nosso antidogmatismo é tão exclusivista como o funcionário e que não somos livres e gritamos liberdade, necessidade severa sem disciplina nem moral e cuspimos na humanidade."


Primeiras linhas de
"Sete Manifestos Dada"
Tristan Tzara
trad. José Miranda Justo
Hiena Editora, 1987

17 setembro, 2013

"Contra o seu costume, Albano viera tarde e entrara sem os cuidados tidos nas outras noites, quando queria abafar rumores; logo, porém, volvera às precauções de sempre. Era preciso que ela não desconfiasse! Cerrou, vagarosamente, a porta e, no velho bengaleiro, dependurou o chapéu. Na casa havia silêncio e nenhuma outra luz além da que ele acendera no corredor. Começou a andar sobre a ponta dos sapatos, cada vez mais cauteloso. Cecília já dormia quando ele chegou ao quarto. O seu primeiro ímpeto foi matá-la imediatamente, mas conteve-se."


Primeiras linhas de 
"A Tempestade"
Ferreira de Castro
Guimarães & Cª., 1950

16 setembro, 2013

"Hoje não fui à escola. Isto é, fui, mas só para pedir ao director de turma que me deixasse voltar para casa. Entreguei-lhe a carta do meu pai, na qual solicitava a minha dispensa, alegando "razões familiares". Perguntou que razões familiares eram essas. Disse-lhe que o meu pai tinha sido convocado para um campo de trabalho; e não levantou mais dificuldades."


Primeiras linhas de 
"Sem Destino"
Imre Kertész
Trad. Ernesto Rodrigues
Editorial Presença, 2003 

15 setembro, 2013

"MAX: Em boa verdade, Anatol, invejo-te...
ANATOL (sorri)
MAX: Bem, é preciso que te diga, eu fiquei sem pinga de sangue. Pois que até aqui pensei que tudo fosse uma fantasia. Mas quando eu vi...como ela adormeceu diante dos meus olhos...como ela dançou, quando lhe disseste que era uma bailarina, e como ela chorou, quando lhe disseste que o amante tinha morrido, e como ela perdoou a um criminoso, quando a fizeste rainha..."


Primeiras linhas de 
"Anatol"
Arthur Schnitzler
trad. Ludwig Scheidl
Livraria Estante Editora, 1986

14 setembro, 2013

"Se estão mesmo interessados nisto, então a primeira coisa que devem querer saber é onde nasci, e como foi a porcaria da minha infância, o que faziam os meus pais e tudo antes de eu ter nascido, e toda essa treta estilo David Copperfield, mas não estou nada para aí virado, para dizer a verdade."

Primeiras linhas de
"À Espera no Centeio"
J.D. Salinger
trad. José Lima
Quetzal, 2011

12 setembro, 2013

"O que eu faço é só, só isto: tentar escrever sobre o que observo. Sou um pouco como um detective. Também não me falta compaixão pela condição humana. Procuro conferir uma certa dignidade a todas as situações que descrevo e às pessoas sobre quem escrevo. Mas, frequentemente, a inspiração para uma canção não tem nada a ver com o que descrevo dela. As histórias não são mais do que uma metáfora para qualquer coisa de que quero falar. Sou um "songwriter", não um jornalista. Cito imensos locais e nomes mas, geralmente, são apenas metáforas para algo de diferente."


Primeiras linhas de
"Nocturnos"
Tom Waits
trad. João Lisboa
Assírio e Alvim,1989

11 setembro, 2013

"Noites e noites a fio, quase de madrugada, desenrolava-se a mesma cena: um grande automóvel preto - um carro americano de antes da guerra, talvez um De Soto dos anos trinta - parava de repente ao pé de mim. O motorista, fardado de negro, mantinha-se muito hirto no seu lugar; eu não chegava sequer a ver-lhe o rosto. Mais me intrigava aliás o próprio carro, que parecia ter estado debaixo de água - ou ter sido fabricado no fundo do mar -, embora não apresentasse, na carroçaria, nenhum vestígio de humidade. Mas o capot faiscava, na sombra, como o dorso de um cetáceo; o flanco fusiforme dos faróis denunciava não sei que secreto comércio com os peixes; e a porta de trás, que vinha agora de entreabrir-se - sem que ninguém lhe houvesse tocado - evocava irresistivelmente, pelo crebo palpitar em que ficara, o inquietante mistério de uma guelra."


Primeiras linhas de
"Os Amantes e Outros Contos"
David Mourão-Ferreira
Editorial Presença, 1989

08 setembro, 2013

"Parece-me muito bem que o romancista descanse de vez em quando da escrita de ficção. É terrível ter de escrever um romance por ano, como acontece a muitos autores, para ganharem a vida ou para não serem esquecidos, caso se mantenham em silêncio. Por muito fértil que seja a sua imaginação, é pouco provável que se consigam lembrar sempre de um tema tão premente que se torne impossível deixar de escrever sobre ele. É igualmente pouco provável que consigam criar personagens diferentes e cheias de vida, que nunca tenham usado antes. Se tiverem o dom dos contadores de histórias talvez consigam produzir uma obra de ficção aceitável, mas só com muita sorte será mais do que isso. Todas as obras de um autor deviam registar uma aventura espiritual do mesmo. Este meu conselho é de perfeccionismo."


Primeiras linhas de
Um Gentleman na Ásia
trad. Raquel Mouta
Tinta da China, 2013