Brassaï, Georges Braque no atelier da Rue du Daumier, Paris, 1946 |
30 junho, 2019
12 junho, 2019
Mark Strand
FUI UM EXPLORADOR POLAR
Na minha juventude fui um explorador polar
e passei noites e dias incontáveis gelando
de lugar vazio em lugar vazio. Por fim,
deixei de viajar e fiquei em casa,
aí cresceu em mim um repentino excesso de desejo,
como se me tivesse atravessado um resplandecente
feixe de luz daqueles que se vêem no interior de um diamante.
Enchi páginas e páginas com as visões que havia testemunhado -
os rugidos do gelo no mar, glaciares gigantes, o branco dos icebergues
chicoteado pelo vento. Então, sem nada mais para dizer, parei
e dirigi a minha atenção para o que me estava próximo. Quase ao mesmo
[tempo,
um homem de casaco negro e chapéu de aba larga
apareceu entre as árvores em frente à minha casa.
A forma como olhou a direito e ficou quieto,
sem se mover minimamente, os braços estendidos
ao longo do corpo, fizeram-me pensar que o conhecia.
Mas quando levantei a mão para o cumprimentar,
ele deu um passo atrás, voltou-se, e começou a desaparecer
como uma ânsia desaparece até que nada sobre dela.
Mark Strand
Na minha juventude fui um explorador polar
e passei noites e dias incontáveis gelando
de lugar vazio em lugar vazio. Por fim,
deixei de viajar e fiquei em casa,
aí cresceu em mim um repentino excesso de desejo,
como se me tivesse atravessado um resplandecente
feixe de luz daqueles que se vêem no interior de um diamante.
Enchi páginas e páginas com as visões que havia testemunhado -
os rugidos do gelo no mar, glaciares gigantes, o branco dos icebergues
chicoteado pelo vento. Então, sem nada mais para dizer, parei
e dirigi a minha atenção para o que me estava próximo. Quase ao mesmo
[tempo,
um homem de casaco negro e chapéu de aba larga
apareceu entre as árvores em frente à minha casa.
A forma como olhou a direito e ficou quieto,
sem se mover minimamente, os braços estendidos
ao longo do corpo, fizeram-me pensar que o conhecia.
Mas quando levantei a mão para o cumprimentar,
ele deu um passo atrás, voltou-se, e começou a desaparecer
como uma ânsia desaparece até que nada sobre dela.
Mark Strand
31 maio, 2019
18 maio, 2019
Ana Cristina César
Ana Cristina César |
O HOMEM PÚBLICO N. 1
Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda
Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda
Ana Cristina César, A Teus Pés, 1982
Ana Cristina César
FLORES DO MAIS
devagar escreva
uma primeira letra
escreva
na imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais
devagar escreva
uma primeira letra
escreva
na imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais
Ana Cristina César, Inéditos e Dispersos, 1998
Conceição Lima
O VENDEDOR
Os olhos vagalumem como pirilampos
no encalço dos fregueses
Do fio que é a mão esvoaçam
sacos de plástico
precários, multicores balões
A Feira do Ponto é o seu pátio.
Ao fim do dia, parcimonioso,
devolve a bolsa das moedas a um adulto
e recupera a idade.
Os olhos vagalumem como pirilampos
no encalço dos fregueses
Do fio que é a mão esvoaçam
sacos de plástico
precários, multicores balões
A Feira do Ponto é o seu pátio.
Ao fim do dia, parcimonioso,
devolve a bolsa das moedas a um adulto
e recupera a idade.
Conceição Lima, A Dolorosa Raiz do Micondó
Conceiçao Lima
Há-de nascer de novo o micondó -
belo, imperfeito, no centro do quintal
belo, imperfeito, no centro do quintal
Conceição Lima, A Dolorosa Raiz do Micondó
Sophia de Mello Breyner Andresen e Conceição Lima, em S. Tomé (autor? data?) |
06 maio, 2019
24 abril, 2019
19 abril, 2019
Rui Knopfli
Entretanto, num levedar de ternura,
frágil e muito bela a vida desponta
na negra polpa de outros dedos.
Para nós, o prémio do aço,
a estrela de pólvora, a comenda do fogo.
Para nós a consolação do sorriso triste
e da amargura sabida. Falamo-nos
e nas palavras mais comuns
há rituais de despedida. Falamos
e as palavras que dizemos
dizem adeus.
Rui Knopfli, Máquina de Areia
frágil e muito bela a vida desponta
na negra polpa de outros dedos.
Para nós, o prémio do aço,
a estrela de pólvora, a comenda do fogo.
Para nós a consolação do sorriso triste
e da amargura sabida. Falamo-nos
e nas palavras mais comuns
há rituais de despedida. Falamos
e as palavras que dizemos
dizem adeus.
Rui Knopfli, Máquina de Areia
15 abril, 2019
Raul de Carvalho
Nada de inúteis palavras apenas proferidas pela língua.
O riso deve ter um alvo.
A lágrima deve ter um rio comum onde se deite e corra.
A raiva deve adormecer satisfeita.
A crítica deve atingir os seus fins.
O sono deve acordar a tempo.
O sonho deve saber onde está e o que quer.
E dividir com alguém o sacrifício, a espera,
a desilusão, a esperança, o receio
da morte e o caminho da vida.
As palavras devem permanecer juntas e unidas
no coração dos homens:
Aqueles que estão prontos
A, não acreditando nelas,
Serem capazes de morrer por elas.
E pelos outros.
Raul de Carvalho, Um E O Mesmo Livro
O riso deve ter um alvo.
A lágrima deve ter um rio comum onde se deite e corra.
A raiva deve adormecer satisfeita.
A crítica deve atingir os seus fins.
O sono deve acordar a tempo.
O sonho deve saber onde está e o que quer.
E dividir com alguém o sacrifício, a espera,
a desilusão, a esperança, o receio
da morte e o caminho da vida.
As palavras devem permanecer juntas e unidas
no coração dos homens:
Aqueles que estão prontos
A, não acreditando nelas,
Serem capazes de morrer por elas.
E pelos outros.
Raul de Carvalho, Um E O Mesmo Livro
13 abril, 2019
Testemunhas
10 abril, 2019
08 abril, 2019
07 abril, 2019
05 abril, 2019
Wallace Stevens
Deita fora as luzes, as definições,
E diz do que vês no escuro
Que é isto ou que é aquilo,
Mas não uses os nomes podres.
Wallace Stevens, O Homem da Viola Azul
E diz do que vês no escuro
Que é isto ou que é aquilo,
Mas não uses os nomes podres.
Wallace Stevens, O Homem da Viola Azul
01 abril, 2019
31 março, 2019
aves
Ao contrário dos humanos, que raramente voam, elas
deleitam-se no voo, mas ainda ao contrário dos humanos
é muito raro que o façam na direcção de uma gaiola.
Rui Caeiro, Deus e outros animais
deleitam-se no voo, mas ainda ao contrário dos humanos
é muito raro que o façam na direcção de uma gaiola.
Rui Caeiro, Deus e outros animais
Hannah Höch, Bilderbuch, 1945 |
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