09 outubro, 2013

"Vivemos no meio de um logro magistral, de um mundo desaparecido que nos recusamos a reconhecer como tal, e que políticas artificiais pretendem perpetuar. Milhões de destinos são devastados e aniquilados por esse anacronismo, devido a estratagemas tenazes destinados a dar como imperecível o nosso tabu mais sagrado: o do trabalho.
Desviado sob a forma perversa de "emprego", o trabalho dá de facto fundamento à civilização ocidental, que domina por inteiro o planeta."


Primeiras linhas de 
"O Horror Económico"
Viviane Forrestier
trad. Ana Barradas
Terramar, 1997

08 outubro, 2013

"Havia na Vestefália, no castelo do Sr. Barão de Thunderten-tronck, um jovem que a natureza tinha dotado com as melhores qualidades. O seu rosto era o espelho da alma. Era de entendimento claro e espírito simples; e creio que foi essa a razão por que lhe deram o nome de Cândido.
Os velhos criados da casa suspeitavam de que era filho da irmã do Sr. Barão e de um bom e honrado cavalheiro da vizinhança que aquela dama não quisera desposar por ele só ter conseguido provar setenta e um costados de nobreza e por o resto da sua árvore genealógica se ter perdido com os estragos do tempo."


Primeiras linhas de
"Cândido ou o Optimismo"
Voltaire
trad. Maria Isabel Gonçalves Tomás
livros de bolso Europa-América, s/d

07 outubro, 2013

"A jovem actriz Lisa Bielogorskaia esteve a ponto de soluçar de alegria quando lhe anunciaram que partia para a frente de combate."


Primeiras linhas de 
"O Destino do Capitão Volkov"
Ilya Erhenburg
trad. Carlos Grifo
Editorial Presença, 1967

06 outubro, 2013

"- Queres ler o que está escrito por cima da partitura? - perguntou a senhora.
- Moderato Cantabile - disse a criança.
A senhora marcou esta resposta com uma pancada de lápis sobre o teclado. A criança ficou imóvel, a cabeça voltada para a partitura.
- E o que quer dizer moderato cantabile?
- Não sei.
Uma mulher, sentada a três metros dali, suspirou.
- Tens a certeza de não saber o que quer dizer moderato cantabile? - retomou a senhora
A criança não respondeu. A senhora deu um grito de sufocada impotência, batendo de novo com o lápis sobre o teclado. A criança não mexeu nem uma pestana."


Primeiras linhas de 
"Moderato Cantabile"
Marguerite Duras
trad. Flora Larsson e Ana Paula Laborinho
Difel, s/d

05 outubro, 2013

"Eu entrei na pintura por emoção. A primeira vez que vi o sol desaparecer no mar, a impressão que isso me fez! Era ainda muito pequena, tão pequena que nem sabia que aquilo era o pôr do sol, mas fiquei com aquela recordação..."


Primeiras linhas de
"Conversas com Sarah Affonso"
Maria José Almada Negreiros  
Edições "O Jornal", 1985

04 outubro, 2013

"No Outono de 1946, as folhas outonais caíram pela terceira vez desde o célebre discurso de Churchill sobre a iminência da queda das folhas. Era um outono triste, húmido e frio, com crises da fome na região do Ruhr e de fome sem crises no resto do antigo III Reich. Durante todo o outono foram chegando comboios que traziam para as zonas ocidentais refugiados vindos do Leste. Esfomeados, andrajosos, olhados de través, acotovelavam-se nos abrigos sombrios e fétidos das estações de caminho de ferro ou então nos imensos bunkers sem janelas, semelhantes a gasómetros quadrados, que se elevam como imponentes monumentos erigidos em louvor da derrota nas cidades arrasadas da Alemanha."


Primeiras linhas de 
"Outono Alemão"
Stig Dagerman
trad. Júlio Henriques
Antígona, 1998

03 outubro, 2013

"Voltei à minha terra, caros senhores, após uma longa ausência - sete anos, para ser preciso, durante os quais estudei na Europa. Muito foi o que aprendi e muito foi o que perdi - mas essa é outra história. O importante é que voltei com o desejo desmedido de ver a minha gente, nessa pequena aldeia, junto à curva do Nilo."


Primeiras linhas de
"Época de Migração para Norte"
Al -Tayyeb Salih
trad. Raquel Carapinha
Cavalo de Ferro, 2006

01 outubro, 2013

"O Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum, mas eram enormes e estavam sempre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho. Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem dizer."


Primeiras linhas de
"Nós Matámos o Cão-Tinhoso"
Luís Bernardo Honwana
Edições Afrontamento, 1988

30 setembro, 2013

"Alice estava a começar a ficar farta de estar sentada ao lado da irmã na margem do rio e de não ter nada que fazer: já tinha dado uma olhadela, uma vez por outra, ao livro que a irmã estava a ler, mas este não tinha ilustrações nem diálogos. "E para que serve um livro", pensou ela, "se não tem bonecos nem diálogos?"
Por isso ela estava a tentar decidir, da melhor forma que podia (pois o calor fazia-a sentir-se muito ensonada e estúpida), se o prazer de fazer uma coroa de margaridas valia a maçada de se levantar e de ir apanhá-las, quando, de repente, um Coelho Branco com olhos cor-de-rosa apareceu a correr ao lado dela."


Primeiras linhas de 
"Alice no País das Maravilhas"
trad. Vera Azancot
Biblioteca Visão, 2000

29 setembro, 2013

"Um grito esfarpado encheu a cadeia.
Num sobressalto, o rapaz ergueu-se da sonolência em que jazia sôbre a tarimba e foi até às grades. Alquebrado de torpor, a princípio nada compreendeu. Viu, confusamente, os canteiros cheios de flores, as árvores e, para lá do jardim, o edifício amarelado dos Paços do Concelho.
Mas o grito ainda ecoava; morria aflito e longo. Sentiu os homens agitarem-se na cela comum do rés-do-chão e, perto, soltou-se uma voz lamentosa e resignada:
- Cala-te, Dòninha! "



Primeiras linhas de
"Cerromaior"
Manuel da Fonseca
Editorial Inquérito, 1943

28 setembro, 2013

"Perfumava o atelier um delicioso aroma de rosas, e, quando a leve brisa estival sacudia as árvores do jardim, sentia-se através da porta aberta a fragância pesada do lilás ou o perfume mais delicado do espinheiro cor-de-rosa.
Do canto do divã persa em que estava estendido, fumando, como tinha por hábito, inúmeros cigarros, Lorde Henrique Wotton o mais que podia com o olhos abranger era um codesso de flores cor de mel, cujos ramos trémulos pareciam mal poder com o peso duma beleza tão etérea e subtil; e, de quando em quando, as fantásticas sombras de aves cruzavam as cortinas de seda que guarneciam a enorme janela, produzindo como um momentâneo efeito japonês e fazendo-o pensar nesses pálidos pintores de Tóquio que, por meio duma arte que é necessariamente imóvel, procuram dar a sensação da ligeireza e do movimento."


Primeiras linhas de 
"O Retrato de Dorian Gray"
Oscar Wilde
trad. Januário Leite
Círculo dos Leitores,1990

27 setembro, 2013

"No jardim zoológico de Berlim, ao lado da piscina que contém a morsa viva, há uma exposição invulgar. Num mostruário de vidro, estão todas as coisas encontradas no estômago de Roland, a Morsa, que morreu a 21 de Agosto de 1961. Ou, mais precisamente:"


Primeiras linhas de 
"O Museu da Rendição Incondicional"
Dubravka Ugressic
trad. Sofia Castro Rodrigues
Cavalo de Ferro, 2011

26 setembro, 2013

"O velho Dudley deixou-se cair na cadeira que, pouco a pouco, moldava de acordo com as formas do seu corpo e olhou pela janela, a cinco metros de si, para dentro de outra janela emoldurada por tijolos vermelhos enegrecidos. Estava à espera do gerânio. Punham-no ao sol todos os dias por volta das dez da manhã e recolhiam-no às cinco e meia da tarde. Na terra dele, a Srª Carson tinha um gerânio à janela. Na terrinha havia gerânios com fartura, gerânios a sério, não há dúvida nenhuma, pensou o Velho Dudley, não são estes estafermos cor-de-rosa desmaiada com laços verdes, de papel."


Primeiras linhas de 
"O Gerânio - Contos Dispersos"
Flannery O'Connor
trad.de Luís Coimbra
Cavalo de Ferro, 2010

25 setembro, 2013

"Há um direito que só muito poucos intelectuais cuidam de reivindicar: o direito à errância, à vagabundagem.
E, no entanto, a vagabundagem é a emancipação, e a vida ao longo das estradas, a liberdade.
Romper corajosamente um dia com todos os entraves que a vida moderna e a fraqueza do nosso coração, a pretexto de liberdade, fizeram pesar sobre os nossos movimentos, pegar no bordão e no alforge simbólicos e partir!
Para quem conhece o valor e também o delicioso sabor da liberdade solitária (porque apenas sós somos livres), não há acto mais corajoso nem mais belo do que o da partida."


Primeiras linhas de
"Escritos no Deserto"
Isabelle Eberhardt
trad. Miguel Serras Pereira
Relógio d'Água, 1990

24 setembro, 2013

"Não tendo outra alternativa, o sol brilhava sobre o nada de novo.
Murphy estava, como se fosse livre, sentado ao abrigo dos raios, no pátio do Menino Jesus, em West Brompton, Londres. Aí, durante meses, talvez anos, tinha comido, bebido, dormido, tinha-se vestido e despido, numa gaiola de tamanho médio exposta ao noroeste."


Primeiras linhas de
"Murphy"
Samuel Beckett
trad. de José Manuel Simões
Editorial Presença, 1961

23 setembro, 2013

"Ela sai apressadamente de casa, com um casaco pesado demais para o tempo que estava. É o ano de 1941. Começou outra guerra. Deixou um bilhete para Leonard e outro para Vanessa. Caminha decididamente em direcção ao rio, segura do que vai fazer, mas, mesmo assim, mesmo neste momento, sente-se quase absorta com a vista das colinas, da igreja e de um grupo disperso de ovelhas, incandescentes, levemente coloridas por uma pálida tonalidade de enxofre, pastando sob um céu que escurece. Detêm-se a observar as ovelhas e o céu e depois continua a andar."


Primeiras linhas de 
"As Horas"
Michael Cunningham
trad. de Fernanda Pinto Rodrigues
Gradiva, 2003

22 setembro, 2013

"Nunca tive um rosto bonito. A mocidade é que fazia de beleza. A estrutura óssea é boa. Mas a carne, por cima dela, organiza-se mal. Além disso o esqueleto altera-se com o tempo, e estraga-se."


Primeiras linhas de 
"Toro - Ritual de Amor e Morte"
Jean Cocteau
trad. de Aníbal Fernandes
Hiena Editora, 1987

21 setembro, 2013

"A 3 de Junho de 1995, no dia seguinte a ter sido notificado com um mandato de execução, recebi um "processo de má fé" por prática activa de um trabalho ou de uma profissão", nomeadamente a de jornalista. O Estado acusa-me de ter escrito o que vocês estão neste momento a ler e ameaçaram punir-me por ter tido a ousadia de dizer e escrever a verdade - enquanto eu me encontro na mais severa secção prisional autorizada pelo Estado
Que delito constitucional cometi eu? O meu livro Live from the Death Row. Ele dá uma imagem pouco elogiosa de um sistema carcerário que se auto-intitula "correccional", mas que mais não faz do que corromper as almas humanas; um sistema que engole centenas de milhões de dólares para torturar, estropiar e mutilar dezenas de milhares de homens e mulheres, um sistema que gera o rancor e o ódio.
Na verdade, o que o governo deseja não é somente a morte, é também o silêncio - um detido "correcto" é aquele que se cala."


Primeiras linhas de
"A Morte em Flor"
Mumia Abu-Jamal
trad.de Joana Caspurro, Jorge Pinho e José António Remelhe
Campo das Letras, 1999

20 setembro, 2013

"Acabo de visitar o meu senhorio: o meu vizinho solitário, o único que tenho neste ermo a que me abriguei. Isto é uma região admirável. Não se poderia encontrar em toda a Inglaterra sítio mais afastado do bulício do mundo. Um verdadeiro éden para misantropos. E eu e o Sr. Heathcliff estamos talhados para dividir entre nós toda esta solidão.Excelente sócio! Mal sabe quanto me senti atraído para ele no momento em que, parando a montada, lhe vi os olhos pretos e suspeitosos, de cenho carregado, e quando, na ocasião de me apresentar, percebi que escondia mais os dedos nos bolsos do colete."


Primeiras linhas de
"O Monte dos Vendavais"
Emily Bronte
trad. Maria Franco e Cabral do Nascimento
Publicações Europa-América, 1993

19 setembro, 2013

"Dada é a nossa intensidade: que ergue as baionetas sem consequência a cabeça sumatral do bebé alemão; Dada é a vida sem pantufas nem paralelos; que é contra e a favor da unidade e decididamente contra o futuro; sabemos sabiamente que os nossos cérebros se hão-de tornar almofadas macias, que o nosso antidogmatismo é tão exclusivista como o funcionário e que não somos livres e gritamos liberdade, necessidade severa sem disciplina nem moral e cuspimos na humanidade."


Primeiras linhas de
"Sete Manifestos Dada"
Tristan Tzara
trad. José Miranda Justo
Hiena Editora, 1987