Édouard Vuillard, The Artist’s Mother Opening a Door, 1886 |
13 julho, 2019
Mario Benedetti (defender a alegria)
Defender a alegria como uma trincheira
defendê-la do escândalo e da rotina
da miséria e dos miseráveis
das ausências transitórias
e das definitivas
defender a alegria como um princípio
defendê-la do pasmo e dos pesadelos
dos neutrais e dos neutrões
das doces infâmias
e dos graves diagnósticos
defender a alegria como uma bandeira
defendê-la do raio e da melancolia
dos ingénuos e dos canalhas
da retórica e das paragens cardíacas
das endemias e das academias
defender a alegria como um destino
defendê-la do fogo e dos bombeiros
dos suicidas e dos homicidas
das férias e da angústia
da obrigação de estarmos alegres
defender a alegria como uma certeza
defendê-la da ferrugem e da sarna
da famosa pátina do tempo
do relento e do oportunismo
dos proxenetas do riso
defender a alegria como um direito
defendê-la de deus e do inverno
das maiúsculas e da morte
dos apelidos e das lástimas
do acaso
e também da alegria.
Mario Benedetti, em Lacre (traduções e versões de Vasco Gato)
defendê-la do escândalo e da rotina
da miséria e dos miseráveis
das ausências transitórias
e das definitivas
defender a alegria como um princípio
defendê-la do pasmo e dos pesadelos
dos neutrais e dos neutrões
das doces infâmias
e dos graves diagnósticos
defender a alegria como uma bandeira
defendê-la do raio e da melancolia
dos ingénuos e dos canalhas
da retórica e das paragens cardíacas
das endemias e das academias
defender a alegria como um destino
defendê-la do fogo e dos bombeiros
dos suicidas e dos homicidas
das férias e da angústia
da obrigação de estarmos alegres
defender a alegria como uma certeza
defendê-la da ferrugem e da sarna
da famosa pátina do tempo
do relento e do oportunismo
dos proxenetas do riso
defender a alegria como um direito
defendê-la de deus e do inverno
das maiúsculas e da morte
dos apelidos e das lástimas
do acaso
e também da alegria.
Mario Benedetti, em Lacre (traduções e versões de Vasco Gato)
11 julho, 2019
no words for
08 julho, 2019
04 julho, 2019
Daniel Bellet
Daniel Bellet , Fun Walks Through Science,1905 |
Olhai, meus irmãos! Não vedes o arco-íris...
Nietzsche, Assim Falava Zaratrusta
02 julho, 2019
30 junho, 2019
12 junho, 2019
Mark Strand
FUI UM EXPLORADOR POLAR
Na minha juventude fui um explorador polar
e passei noites e dias incontáveis gelando
de lugar vazio em lugar vazio. Por fim,
deixei de viajar e fiquei em casa,
aí cresceu em mim um repentino excesso de desejo,
como se me tivesse atravessado um resplandecente
feixe de luz daqueles que se vêem no interior de um diamante.
Enchi páginas e páginas com as visões que havia testemunhado -
os rugidos do gelo no mar, glaciares gigantes, o branco dos icebergues
chicoteado pelo vento. Então, sem nada mais para dizer, parei
e dirigi a minha atenção para o que me estava próximo. Quase ao mesmo
[tempo,
um homem de casaco negro e chapéu de aba larga
apareceu entre as árvores em frente à minha casa.
A forma como olhou a direito e ficou quieto,
sem se mover minimamente, os braços estendidos
ao longo do corpo, fizeram-me pensar que o conhecia.
Mas quando levantei a mão para o cumprimentar,
ele deu um passo atrás, voltou-se, e começou a desaparecer
como uma ânsia desaparece até que nada sobre dela.
Mark Strand
Na minha juventude fui um explorador polar
e passei noites e dias incontáveis gelando
de lugar vazio em lugar vazio. Por fim,
deixei de viajar e fiquei em casa,
aí cresceu em mim um repentino excesso de desejo,
como se me tivesse atravessado um resplandecente
feixe de luz daqueles que se vêem no interior de um diamante.
Enchi páginas e páginas com as visões que havia testemunhado -
os rugidos do gelo no mar, glaciares gigantes, o branco dos icebergues
chicoteado pelo vento. Então, sem nada mais para dizer, parei
e dirigi a minha atenção para o que me estava próximo. Quase ao mesmo
[tempo,
um homem de casaco negro e chapéu de aba larga
apareceu entre as árvores em frente à minha casa.
A forma como olhou a direito e ficou quieto,
sem se mover minimamente, os braços estendidos
ao longo do corpo, fizeram-me pensar que o conhecia.
Mas quando levantei a mão para o cumprimentar,
ele deu um passo atrás, voltou-se, e começou a desaparecer
como uma ânsia desaparece até que nada sobre dela.
Mark Strand
31 maio, 2019
18 maio, 2019
Ana Cristina César
Ana Cristina César |
O HOMEM PÚBLICO N. 1
Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda
Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda
Ana Cristina César, A Teus Pés, 1982
Ana Cristina César
FLORES DO MAIS
devagar escreva
uma primeira letra
escreva
na imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais
devagar escreva
uma primeira letra
escreva
na imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais
Ana Cristina César, Inéditos e Dispersos, 1998
Conceição Lima
O VENDEDOR
Os olhos vagalumem como pirilampos
no encalço dos fregueses
Do fio que é a mão esvoaçam
sacos de plástico
precários, multicores balões
A Feira do Ponto é o seu pátio.
Ao fim do dia, parcimonioso,
devolve a bolsa das moedas a um adulto
e recupera a idade.
Os olhos vagalumem como pirilampos
no encalço dos fregueses
Do fio que é a mão esvoaçam
sacos de plástico
precários, multicores balões
A Feira do Ponto é o seu pátio.
Ao fim do dia, parcimonioso,
devolve a bolsa das moedas a um adulto
e recupera a idade.
Conceição Lima, A Dolorosa Raiz do Micondó
Conceiçao Lima
Há-de nascer de novo o micondó -
belo, imperfeito, no centro do quintal
belo, imperfeito, no centro do quintal
Conceição Lima, A Dolorosa Raiz do Micondó
Sophia de Mello Breyner Andresen e Conceição Lima, em S. Tomé (autor? data?) |
06 maio, 2019
24 abril, 2019
19 abril, 2019
Rui Knopfli
Entretanto, num levedar de ternura,
frágil e muito bela a vida desponta
na negra polpa de outros dedos.
Para nós, o prémio do aço,
a estrela de pólvora, a comenda do fogo.
Para nós a consolação do sorriso triste
e da amargura sabida. Falamo-nos
e nas palavras mais comuns
há rituais de despedida. Falamos
e as palavras que dizemos
dizem adeus.
Rui Knopfli, Máquina de Areia
frágil e muito bela a vida desponta
na negra polpa de outros dedos.
Para nós, o prémio do aço,
a estrela de pólvora, a comenda do fogo.
Para nós a consolação do sorriso triste
e da amargura sabida. Falamo-nos
e nas palavras mais comuns
há rituais de despedida. Falamos
e as palavras que dizemos
dizem adeus.
Rui Knopfli, Máquina de Areia
15 abril, 2019
Raul de Carvalho
Nada de inúteis palavras apenas proferidas pela língua.
O riso deve ter um alvo.
A lágrima deve ter um rio comum onde se deite e corra.
A raiva deve adormecer satisfeita.
A crítica deve atingir os seus fins.
O sono deve acordar a tempo.
O sonho deve saber onde está e o que quer.
E dividir com alguém o sacrifício, a espera,
a desilusão, a esperança, o receio
da morte e o caminho da vida.
As palavras devem permanecer juntas e unidas
no coração dos homens:
Aqueles que estão prontos
A, não acreditando nelas,
Serem capazes de morrer por elas.
E pelos outros.
Raul de Carvalho, Um E O Mesmo Livro
O riso deve ter um alvo.
A lágrima deve ter um rio comum onde se deite e corra.
A raiva deve adormecer satisfeita.
A crítica deve atingir os seus fins.
O sono deve acordar a tempo.
O sonho deve saber onde está e o que quer.
E dividir com alguém o sacrifício, a espera,
a desilusão, a esperança, o receio
da morte e o caminho da vida.
As palavras devem permanecer juntas e unidas
no coração dos homens:
Aqueles que estão prontos
A, não acreditando nelas,
Serem capazes de morrer por elas.
E pelos outros.
Raul de Carvalho, Um E O Mesmo Livro
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