CHAVE MESTRA
A luz do seu quarto fala-me dele quando não está,
acompanha-me quando tenho medo,
e tenho sempre medo porque sou valente;
ouve os seus passos nos mosaicos da entrada
vai ao seu encontro quando ele abre a porta lentamente
quando eu o espero, e espero-o sempre;
passa-se o mesmo com a luz eléctrica que com a luz do sol,
passa-se o mesmo com o sol que com a lua ou a estrela.
Uma tapeçaria é formada pela luz complicada
é a vida e sempre a vida.
Se ficasse cega vê-la-ia com as minhas patas
ou talvez com a testa quando chega.
A tapeçaria não é formada pela luz mas pela sua chegada, o som
que muda de escuro a claro.
O painel da luz tem várias chaves
mas uma comanda o resto:
chama-se chave mestra.
Do mesmo modo o painel da minha luz
tem uma só chave que comanda as outras
a chave que está nas suas mãos.
Apagaria todas as luzes se quisesse
mas fecho os olhos para não ver
a obscuridade que poderia ser luz
para não o ferir.
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ADVERTÊNCIAS VÃS
Tem cuidado com a tua imaginação.
Em qualquer lugar da terra pode estar, segue-nos todo o tempo
pouco a pouco torna-se realidade grosseira ou delicada
o que o homem ou a besta, as plantas ou as pedras imaginaram.
Os doentes com febre, os que tremem, os que querem mas não podem falar
nas salas de espera, entre papéis de jornais, laranjas,
os que olham para o tecto ou então para o sol, pesarosos,
os que se abraçam delituosamente, sem saber porquê
ou no recinto azul do matrimónio, os desfigurados pelas gargalhadas,
as crianças, os escravos, os injustos, os que fazem compras, manuseiam a carne,
os prisioneiros, os soldados, os tiranos, com caras de cantores,
os nadadores, os verdugos ávidos, os que blasfemam,
os que pedem ou dão, os missionários, os anarquistas,
os subjugados, os soberbos, os solitários, os que não entendem,
os que trabalham incessantemente,
os que depois de nunca fazerem nada se cansam
voltam a não fazer nada sem descanso, irredutivelmente
os não-nascidos
os que trazem na pelagem sinais, letras, desenhos,
mistérios que ninguém decifrou,
os que lavam todo o dia como o urso-lavadeiro,
e se rebolam para ser mais fétidos,
os que parecem simplesmente espirituais, ou musicais, ou poéticos,
os que devoram os seus semelhantes,
ou a si próprios por estarem enfurecidos,
os raiados, com pintas, com escamas de prata e cauda,
os ferozes e os domesticados, os que amam,
os que se comem mutuamente para fecundar,
os que se nutrem apenas de ervas ou de leite precioso
ou os que precisam de comer carne podre.
Os que se arrastam ou os mais formosos, com plumas de príncipes,
os que a água guarda entre os seus vidros, verdes claros ou negros,
nos moldes obscuros da terra, enterrada,
os que demoram muitíssimo a morrer, que não morrem
e que parecem plantas ou então pedras, com os acrescentos
do tempo,
os que vivem apenas de milagre, de suicídio, de nada.
tudo o que imaginaram
e o que nós mortais imaginamos
formam a realidade do mundo.
Silvina Ocampo (Argentina, 1931-1993)
(trad.Cristina Tavares /José Pinto de Sá)