08 outubro, 2020

Prune 2020

 

CT, Prune, 2020

31 julho, 2020

Aleksandr Rodchenko

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Aleksandr Rodchenko, Portrait of My Daughter, 1935

Félix Vallotton

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Félix Vallotton, A Praia Branca, 1913

14 julho, 2020

Graciela Iturbide

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Graciela Iturbide, Primeiro Dia de Verão, Veracruz, México, 1982 j

11 julho, 2020

Sonia Delaunay


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Sonia Delaunay , Quilt cover, 1911




10 julho, 2020

Alexander Rodchenko

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Alexander Rodchenko, Composition # 61, 1918



09 julho, 2020

Henri Matisse

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Henri Matisse, Bathers with a Turtle, 1907–8






















08 julho, 2020

Marc Chagall

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Marc Chagall, The Triumph of Music - Metropolitan Opera, NY - 1966




Edward Hopper

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Edward Hopper, Cat Study, 1941





Félix Vallotton



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Félix Vallotton, Coucher de soleil à Grasse, 1918


01 maio, 2020

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 27 Nícolas Guillén


CHEGADA
Aqui estamos!
A palavra vem-nos húmida dos bosques,
e um sol enérgico amanhece-nos entre as veias.
O punho é forte,
e segura o remo.
No olho fundo dormem palmeiras exorbitantes,
e o grito sai-nos como uma gota de ouro virgem.
O nosso pé,
duro e largo,
esmaga o pó nos caminhos abandonados
e estreitos para as nossas filas.
Sabemos onde nascem as águas,
e amamo-las porque empurraram as nossas canoas sob os céus vermelhos.
O nosso canto é como um músculo debaixo da pele da alma,
nosso singelo canto.
Trazemos o fumo na manhã,
e o fogo sobre a noite,
e a faca, como um duro pedaço de lua,
apto para as peles bárbaras;
trazemos os jacarés na lama,
e o arco que dispara os nossos desejos,
e o cinturão do trópico,
e o espírito limpo.
Eh companheiros, aqui estamos!
A cidade espera-nos com os seus palácios, ténues
como os favos de abelhas silvestres;
as suas ruas estão secas como os rios quando não chove na montanha,
e as suas casas fitam-nos com os olhos ávidos das janelas.
Os homens antigos nos darão leite e mel,
e nos coroarão de folhas verdes.
Eh, companheiros, aqui estamos!
debaixo do sol
a nossa pele suada reflectirá os rostos húmidos dos vencidos,
e na noite, enquanto os astros arderem na ponta das nossas chamas,
o nosso riso madrugará sobre os rios e os pássaros.
.
.
........
.
.
MULHER NOVA
Com o círculo equatorial
apertado à cintura como a um pequeno mundo
a negra, mulher nova,
avança no seu leve vestido de serpente.
Coroada de palmas,
como uma deusa recém-chegada,
ela traz a palavra inédita,
a anca forte,
a voz, o dente, a manhã e o salto.
Jorro de sangue jovem
sob um pedaço de pele fresca,
e o pé incansável
para a pista profunda do tambor.

Nícolas Guillén (Cuba, 1902-1989)

trad. Cristina Tavares /José Pinto de Sá 

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 26 Kate Tempest


NOVÍSSIMOS ANCIÃOS
Antigamente
os mitos eram as estórias que usávamos para nos explicarmos,
mas como podemos explicar
a forma como nos odiamos,
as coisas em que nos transformámos,
a forma como nos partimos em dois,
a forma como nos sobrecomplicamos?
Mas ainda somos míticos.
Ainda estamos em permanência presos
algures entre o heróico e o desprezível.
Ainda somos Devotos,
é isso que nos tornou tão monstruosos.
Parece que nos esquecemos
que somos muito mais
que a soma das coisas que nos pertencem.
Cada pessoa tem em si uma intenção a arder.
Olha de novo.
Permite-te vê-los.
Milhões de personagens
Cada um com as suas narrativas épicas
Cantando, “é duro ser anjo
Até teres sido demónio”.
Somos perfeitos por causa das nossas imperfeições,
Temos de manter a esperança
Temos de ser pacientes:
Quando escavarem o nosso tempo
hão de encontrar-nos,
os Novíssimos Anciãos.
Tudo o que aqui temos
é tudo o que sempre tivemos.
Temos ciúme,
ternura,
blasfémias e dádivas.
Mas a condição de um povo que esqueceu os seus mitos
e imagina que de algum modo
o Agora é tudo o que existe
– é uma triste condição,
toda ela isolação e tormento.
Mas a vida nas tuas veias
é Divina, heróica.
Nasceste para a grandeza.
Acredita nisso,
sabe-o,
colhe-o nas lágrimas dos poetas.
Sempre houve heróis,
sempre houve vilões,
as apostas podem ter mudado
mas realmente não há diferença.
Sempre houve cobiça,
e mágoa, e ambição.
Ciúme, amor,
delito e contrição.
Somos os mesmos seres que começaram,
ainda vivendo
em toda a nossa fúria e baixeza e conflito.
Odisseias quotidianas.
Sonhos versus decisões.
As estórias estão aí, se as ouvires.
Somos nós as estórias.
És tu as estórias.
E o teu medo e a tua esperança são tão velhos
como a linguagem do fumo,
a linguagem do sangue,
a linguagem do amor langoroso,
Os Deuses estão aqui todos.
Porque os Deuses estão em nós.
[…]



Kate Tempest (Inglaterra, 1985 - )

trad. Cristina Tavares /José Pinto de Sá

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TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 25 André Breton


GUERRA
Olho a Fera enquanto ela se lambe
Para melhor se confundir com tudo o que a rodeia
Os seus olhos cor de vaga
Inesperadamente são o charco atraindo a si a roupa suja os detritos
Aquele que detém sempre o homem
O charco com a sua pequena Praça da Ópera no ventre
Porque a fosforescência é a chave dos olhos da Fera
Que se lambe
E a sua língua
Lançada nunca se sabe antecipadamente para onde
É uma encruzilhada de fornalhas
De baixo eu contemplo o seu palato
Feito de lâmpadas dentro de sacos
E sob a abóbada azul real
De arcos desdourados em perspetiva um no outro
Enquanto corre o sopro feito da generalização ao infinito daquele desses miseráveis de tronco nu que se exibem na praça pública engolindo archotes com petróleo numa chuva ácida de vinténs
As pústulas da Fera resplandecem dessas hecatombes de jovens de que se empanturra o Número
Os flancos protegidos pelas cintilantes escamas que são os exércitos
Convexos dos quais cada um gira perfeitamente na sua charneira
Embora dependam uns dos outros não menos que os galos que se insultam ao alvorecer de estrumeira a estrumeira
Toca-se na falta de consciência no entanto alguns insistem em sustentar que o dia vai nascer
A porta eu queria dizer a Fera lambe-se debaixo da asa
E vê-se será de rir convulsionarem-se gatunos ao fundo de uma taberna
Essa miragem de que tínhamos feito a bondade pondera-se
É um jazigo de mercúrio
Isso podia bem sorver-se de uma só vez
Acreditei que a Fera se voltava para mim revi a sujidade do relâmpago

André Breton (França, 1896-1966)

trad. Cristina Tavares /José Pinto de Sá

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 24 Silvina Ocampo


CHAVE MESTRA
A luz do seu quarto fala-me dele quando não está,
acompanha-me quando tenho medo,
e tenho sempre medo porque sou valente;
ouve os seus passos nos mosaicos da entrada
vai ao seu encontro quando ele abre a porta lentamente
quando eu o espero, e espero-o sempre;
passa-se o mesmo com a luz eléctrica que com a luz do sol,
passa-se o mesmo com o sol que com a lua ou a estrela.
Uma tapeçaria é formada pela luz complicada
é a vida e sempre a vida.
Se ficasse cega vê-la-ia com as minhas patas
ou talvez com a testa quando chega.
A tapeçaria não é formada pela luz mas pela sua chegada, o som
que muda de escuro a claro.
O painel da luz tem várias chaves
mas uma comanda o resto:
chama-se chave mestra.
Do mesmo modo o painel da minha luz
tem uma só chave que comanda as outras
a chave que está nas suas mãos.
Apagaria todas as luzes se quisesse
mas fecho os olhos para não ver
a obscuridade que poderia ser luz
para não o ferir.
.
.
........
.
.
ADVERTÊNCIAS VÃS
Tem cuidado com a tua imaginação.
Em qualquer lugar da terra pode estar, segue-nos todo o tempo
pouco a pouco torna-se realidade grosseira ou delicada
o que o homem ou a besta, as plantas ou as pedras imaginaram.
Os doentes com febre, os que tremem, os que querem mas não podem falar
nas salas de espera, entre papéis de jornais, laranjas,
os que olham para o tecto ou então para o sol, pesarosos,
os que se abraçam delituosamente, sem saber porquê
ou no recinto azul do matrimónio, os desfigurados pelas gargalhadas,
as crianças, os escravos, os injustos, os que fazem compras, manuseiam a carne,
os prisioneiros, os soldados, os tiranos, com caras de cantores,
os nadadores, os verdugos ávidos, os que blasfemam,
os que pedem ou dão, os missionários, os anarquistas,
os subjugados, os soberbos, os solitários, os que não entendem,
os que trabalham incessantemente,
os que depois de nunca fazerem nada se cansam
voltam a não fazer nada sem descanso, irredutivelmente
os não-nascidos
os que trazem na pelagem sinais, letras, desenhos,
mistérios que ninguém decifrou,
os que lavam todo o dia como o urso-lavadeiro,
e se rebolam para ser mais fétidos,
os que parecem simplesmente espirituais, ou musicais, ou poéticos,
os que devoram os seus semelhantes,
ou a si próprios por estarem enfurecidos,
os raiados, com pintas, com escamas de prata e cauda,
os ferozes e os domesticados, os que amam,
os que se comem mutuamente para fecundar,
os que se nutrem apenas de ervas ou de leite precioso
ou os que precisam de comer carne podre.
Os que se arrastam ou os mais formosos, com plumas de príncipes,
os que a água guarda entre os seus vidros, verdes claros ou negros,
nos moldes obscuros da terra, enterrada,
os que demoram muitíssimo a morrer, que não morrem
e que parecem plantas ou então pedras, com os acrescentos
do tempo,
os que vivem apenas de milagre, de suicídio, de nada.
tudo o que imaginaram
e o que nós mortais imaginamos
formam a realidade do mundo.


Silvina Ocampo (Argentina, 1931-1993)

(trad.Cristina Tavares /José Pinto de Sá)

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 23 Sylvia Plath

SOU VERTICAL
Mas preferia ser horizontal.
Não sou uma árvore com a raiz no solo
Sugando minerais e amor maternal
Para que em cada Março possa brilhar em folha,
Nem sou a beleza de um canteiro de jardim
Atraindo a minha cota de Ahs e espectacularmente pintada,
Sem saber que em breve terei de perder as pétalas.
Comparada comigo, uma árvore é imortal
E a cabeça de uma flor não é alta mas mais surpreendente
E quero a longevidade de uma e a audácia da outra.
Esta noite, à luz infinitesimal das estrelas,
as árvores e as flores têm espalhado os seus frescos odores.
Caminho entre elas, mas nenhuma repara.
Às vezes penso que é quando estou a dormir
Que mais me devo assemelhar a elas—
Pensamentos obscurecidos.
É mais natural para mim, estando deitada.
Então o céu e eu estamos em aberta conversa,
E serei útil quando me deitar finalmente:
Então as árvores podem por uma vez tocar-me, e as flores ter tempo para mim.
.
.
........
.
.
CRUZANDO AS ÁGUAS
Lago negro, barco negro, duas pessoas recortadas a negro.
Para onde vão as árvores negras que bebem aqui?
As suas sombras devem cobrir o Canadá.
Alguma luz filtra-se das flores aquáticas.
As suas folhas não desejam que nos apressemos:
São redondas e planas e cheias de sombrias recomendações.
Mundos frios sacodem-se do remo.
O espírito da escuridão está em nós, está nos peixes.
Uma raiz levanta uma mão pálida de despedida;
Estrelas abrem-se entre os lírios.
Não te cegam tais inexpressivas sereias?
Este é o silêncio das almas assombradas.


Sylvia Plath (EUA, 1932 - 1963)

(trad. Cristina Tavares /José Pinto de Sá)

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 22 Paul Éluard


LIBERDADE
Nos meus cadernos de escola
Na carteira e nas árvores
Na areia e na neve
Escrevo o teu nome
Em todas as páginas lidas
Em todas as páginas em branco
Pedra sangue papel ou cinza
Escrevo o teu nome
Nas imagens douradas
Nas armas dos guerreiros
Na coroa dos reis
Escrevo o teu nome
Na selva e no deserto
Nos ninhos nas giestas
No eco da minha infância
Escrevo o teu nome
Nas maravilhas das noites
No pão branco dos dias
Nas estações em noivado
Escrevo o teu nome
Nos meus retalhos de céu
No charco sol bafiento
No lago lua viva
Escrevo o teu nome
Nos campos no horizonte
Nas asas dos pássaros
E no moinho das sombras
Escrevo o teu nome
Em cada sopro de aurora
No mar nos barcos
Na montanha demente
Escrevo o teu nome
Na espuma das nuvens
Nos suores da trovoada
Na chuva espessa e enfadonha
Escrevo o teu nome
Nas formas cintilantes
Nos sinos das cores
Na verdade física
Escrevo o teu nome
Nos trilhos despertos
Nas estradas desenroladas
Nas praças que transbordam
Escrevo o teu nome
Na lâmpada que se acende
Na lâmpada que se apaga
Nas minhas casas reunidas
Escrevo o teu nome
No fruto cortado em dois
Do espelho e do meu quarto
Na minha cama concha vazia
Escrevo o teu nome
No meu cão guloso e meigo
Nas suas orelhas erguidas
Na sua pata desajeitada
Escrevo o teu nome
No trampolim da minha porta
Nos objectos familiares
Na vaga do fogo bendito
Escrevo o teu nome
Em toda a carne consagrada
Na testa dos meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo o teu nome
Na janela das surpresas
Nos lábios atentos
Bem acima do silêncio
Escrevo o teu nome
Nos meus refúgios destruídos
Nos meus faróis desabados
Nas paredes do meu tédio
Escrevo o teu nome
Na ausência sem desejo
Na solidão nua
Nos degraus da morte
Escrevo o teu nome
Na saúde refeita
No risco desaparecido
Na esperança sem memória
Escrevo o teu nome
E pelo poder de uma palavra
Recomeço a minha vida
Nasci para te conhecer
Para te nomear
Liberdade.
.
.
Paul Éluard (França,1895-1952)
(trad.CT/JPS)

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TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 21 Ted Kooser


AO FIM DE ANOS
Hoje, à distância, vi-te,
afastando-te, e sem um som
a face cintilante de um glaciar
escorregou para o mar. Um velho carvalho
tombou em Cumberlands, conservando apenas
uma mão cheia de folhas, e uma velha
que atirava milho às galinhas ergueu o olhar
por um instante. Do outro lado
da galáxia, uma estrela trinta e cinco vezes
maior que o nosso sol explodiu
e desapareceu, deixando uma pintinha verde
na retina do astrónomo
de pé na grande cúpula aberta
do meu coração sem ninguém a quem contar.
.
.
........
.
.
SELECIONANDO UMA LEITORA
Primeiro, teria de ser bela,
e aproximar-se cautelosamente da minha poesia
no momento mais solitário de uma tarde,
com o cabelo ainda húmido no pescoço
de o ter lavado. Vestiria
uma gabardine velha, e suja
por não ter dinheiro que chegasse para a lavandaria.
Tirará os óculos, e ali
na livraria, folheará
os meus poemas, e depois pousará o livro
outra vez na prateleira. Dirá para si,
“Por este preço, posso mandar
lavar a gabardine.” E assim fará.

Ted Kooser ( EUA, 1939 - )
(trad. Cristina Tavares /José Pinto de Sá)

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 20 Robert Desnos




AO AMANHECER
A manhã desaba como uma pilha de pratos
Em milhares de cacos de porcelana e de horas
E de seixos
E de cascatas
Até sobre o balcão desta tasca muito pobre
Onde as estrelas persistem na noite do café.
Ela não é pobre
Aquela, no seu vestido de noite sujo de lama,
Mas rica das realidades da manhã,
Da embriaguez do seu sangue
E do perfume do seu hálito que nenhuma insónia pode alterar.
Rica de si mesma e de todas as manhãs
Passadas, presentes e futuras,
Rica de si mesma e do sono que a vence
Do sono rígido como um acaju
Do sono e da manhã e de si mesma
E de toda a sua vida que não se conta
Senão por manhãs, auroras deslumbrantes
Cascatas, sonos,
Noites vivas.
Ela é rica
Mesmo se estende a mão
E tem de dormir na fresca manhã
No seu vestido sujo
Num leito de deserto
.
.
..........
.
.
CANTO DO CÉU
A flor dos
Alpes dizia à concha: «tu brilhas»
A concha dizia ao mar: «tu ressoas»
O mar dizia ao barco: «tu tremes»
O barco dizia ao fogo: «tu cintilas»
O fogo dizia-me: «cintilo menos que os seus olhos»
O barco dizia-me: «tremo menos que o teu coração quando ela aparece
O mar dizia-me: «ressoo menos que o seu nome no teu amor»
A concha dizia-me: «brilho menos que o fósforo do desejo no teu sonho fundo»
A flor dos
Alpes dizia-me: «ela é bela»
Eu dizia: «ela é bela, ela é bela, ela é comovente».
.
.
Robert Desnos (França, 1900-1945)
(trad.Cristina Tavares/José Pinto de Sá)
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TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 19 Mario Benedetti


DEFENDER A ALEGRIA
Defender a alegria como uma trincheira
defendê-la do escândalo e da rotina
da miséria e dos miseráveis
das ausências transitórias
e das definitivas
defender a alegria como um princípio
defendê-la do atordoamento e dos pesadelos
dos neutros e dos neutrões
das doces infâmias
e dos graves diagnósticos
defender a alegria como uma bandeira
defendê-la do raio e da melancolia
dos ingénuos e dos canalhas
da retórica e das paragens cardíacas
das endemias e das academias
defender a alegria como um destino
defendê-la do fogo e dos bombeiros
dos suicidas e dos homicidas
das férias e da opressão
da obrigação de estar alegres
defender a alegria como uma certeza
defendê-la da ferrugem e da sujidade
da famosa patine do tempo
do relevante e do oportunismo
dos proxenetas do riso
defender a alegria como um direito
defendê-la de deus e do inverno
das maiúsculas e da morte
dos apelidos e das mágoas
do acaso
e também da alegria.
.
.
........
.
.
QUANDO ÉRAMOS CRIANÇAS
Quando éramos crianças
os velhos tinham uns trinta
um charco era um oceano
a morte suave e plana
não existia.
depois quando rapazes
os velhos eram gente de quarenta
uma lagoa era um oceano
a morte só
uma palavra
já quando nos casámos
os anciãos estavam nos cinquenta
um lago era um oceano
a morte era a morte
dos outros.
agora veteranos
já alcançámos a verdade
o oceano é por fim o oceano
mas a morte começa a ser
a nossa.
.
.
........
.
.
NÃO TE SALVES
Não fiques parado
à beira do caminho
não congeles o júbilo
não ames com indiferença
não te salves agora
nem nunca
não te salves
não te enchas de calma
não reserves do mundo
só um recanto tranquilo
não deixes cair as pálpebras
pesadas como sentenças
não fiques sem lábios
não adormeças sem sonho
não te penses sem sangue
não te julgues sem tempo
mas se
apesar de tudo
não puderes evitá-lo
e congelas o júbilo
e amas com indiferença
e salvas-te agora
e enches-te de calma
e reservas do mundo
só um recanto tranquilo
e deixas cair as pálpebras
pesadas como sentenças
e secas-te sem lábios
e adormeces sem sonho
e pensas-te sem sangue
e julgas-te sem tempo
e ficas parado
à beira do caminho
e salvas-te
então
não fiques comigo.
.
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Mario Benedetti (Uruguai, 1920 -2009)
(trad. Cristina Tavares /José Pinto de Sá)

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 18 Mary Oliver

Instruções para viver uma vida:
Presta atenção.
Maravilha-te.
Fala disso.
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DIA DE VERÃO
Quem fez o mundo?
Quem fez o cisne, e o urso preto?
Quem fez o gafanhoto?
Este gafanhoto, quer dizer –
o que saltou da erva,
o que está a comer açúcar na minha mão,
o que move as mandíbulas para a frente e para trás em vez de para cima e para baixo –
que olha em volta com os seus enormes e complicados olhos.
Agora ergue os pálidos antebraços e lava meticulosamente a cara.
Agora estala as asas e paira para longe.
Não sei exatamente o que é uma oração.
Mas sei estar atenta, sei como cair
na erva, como ajoelhar na erva,
como ser ociosa e abençoada, como vaguear através dos campos,
que é o que tenho feito todo o dia.
Diz-me, que mais devia eu ter feito?
Não morre tudo por fim, e demasiado cedo?
Diz-me, o que planeias fazer
com a tua única selvagem e preciosa vida?
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Uma vez alguém que eu amava deu-me
uma caixa cheia de escuridão.
Levei anos a perceber
que também isso era uma prenda.



Mary Oliver (EUA, 1935-2019)
(trad. Cristina Tavares /José Pinto de Sá)