Não te movas se, de repente,
o Anjo se senta, à tua mesa;
alisa, com vagar, os breves vincos
que a toalha faz, debaixo do teu pão.
Convida-o para a modesta refeição,
que também ele lhe saboreie o gosto,
e possa levar aos lábios impolutos
um pobre copo de uso quotidiano.
Olha em redor, cheio de atenção serena,
com a candura de um operário celeste.
Come como se deve, imitando-te os gestos,
para - como convém - , te construir a casa.
Rainer Maria Rilke, Frutos e Apontamentos (trad. Maria Gabriela Llansol)
03 dezembro, 2015
02 dezembro, 2015
Alexandre O'Neill
Espeta-te com o garfo.
Corta-te com a faca.
Deita-te no prato.
Espera.
Corta-te com a faca.
Deita-te no prato.
Espera.
Alexandre O'Neill, Anos 70: Poemas Dispersos
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01 dezembro, 2015
30 novembro, 2015
29 novembro, 2015
as palavras milagrosas
Nesse tempo eu era hóspede da terra.
Deram-me no baptismo o nome – Anna,
O mais doce para os lábios e os ouvidos
das pessoas.
Assim fascinada conhecia a alegria
terrestre
E contava festas não por doze,
Mas por tantos quantos dias no ano
havia.
Obediente a uma imposição misteriosa,
Tendo escolhido um livre companheiro,
Eu amava somente o sol e as árvores.
Certo dia encontrei num verão tardio
Uma estrangeira na hora enleadora da
madrugada
E ambas nos banhávamos num mar cálido.
Parecia-me estranha a sua roupa,
Mais estranhos – os lábios, e as
palavras –
Como estrelas caíam numa noite de
setembro.
E esguia, ela ensinava-me a nadar
Com a sua mão apoiando-me o corpo
Inexperiente nas ondas firmes.
E várias vezes, de pé na água azul,
Ela comigo falava,
E parecia-me que os cimos do bosque
Rumorejam, ou a areia crepita,
Ou com voz de prata a volinka
Ao longe canta a noite das despedidas.
Mas eu não conseguia fixar as suas
palavras
E muitas vezes acordava alta noite com
uma dor.
Apetecia-me a boca meio aberta,
Os seus olhos e o penteado liso.
Como a celeste mensageiro, implorava
Então à melancólica rapariga:
«Diz-me, diz-me, para quê se apagou a
memória
E, com tal tormento acariciando os
ouvidos,
Tiraste o deleite da repetição?.»
E apenas uma vez, quando eu colhia
Uvas para um pequeno cesto entrançado,
E a morena estava sentada na relva,
Os olhos fechados e as tranças soltas,
E lânguida e quebrantada
Pelo cheiro dos pesados bagos azul
ferrete
E pelo respirar mordente da hortelã, -
Colocou as palavras milagrosas
No tesouro da minha memória.
E deixei cair o cesto cheio,
Colei-me contra a terra seca e abafada,
Como contra o amigo, quando o amor
canta.
(Outono 1913)
Anna Akhmatova, Poemas (trad. Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev)
28 novembro, 2015
Uma pequena palha
Nariz e lábios de Akhenaten, 18ª dinastia, Egipto |
SOMBRA
Sempre mais elegante, mais rosada, mais alta que todas,
Para que vens ao de cima do fundo dos anos tombados
E a memória rapace diante mim faz tremular
O teu perfil transparente por trás dos vidros do coche?
Como se discutia nessa altura - tu, anjo ou pássaro!
Uma pequena palha te chamou o poeta.
Para todos por igual através das negras pestanas
Dos olhos em abismo fluía a terna luz.
Oh sombra! Perdoa-me, mas o tempo claro,
Flaubert, a insónia e os lilases tardios
De ti - bela de 1913 -
E do teu dia indiferente e sem nuvens
Me fizeram lembrar... Mas tais recordações
A mim não me ficam bem. Oh sombra!
(9 de Agosto de 1940. De noite.)
Anna Akhmatova, Poemas (trad. Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev)
1940
AOS HABITANTES DE LONDRES
O vigésimo quarto drama de Shakespeare
Escreve-o o tempo com mão impassível.
Próprios participantes do terrível banquete,
É melhor Lear, Hamlet, César
Lermos sobre o rio de chumbo;
Hoje é melhor a pobre pomba Julieta
Com cânticos e tochas levar ao caixão,
É melhor espreitar as janelas de Macbeth,
Tremer com o assassino pago, -
Este, contudo, não, este não, este não,
Este já não conseguimos ter forças para ler.
(1940)
Anna Akhmatova, Poemas (trad. Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev)
O vigésimo quarto drama de Shakespeare
Escreve-o o tempo com mão impassível.
Próprios participantes do terrível banquete,
É melhor Lear, Hamlet, César
Lermos sobre o rio de chumbo;
Hoje é melhor a pobre pomba Julieta
Com cânticos e tochas levar ao caixão,
É melhor espreitar as janelas de Macbeth,
Tremer com o assassino pago, -
Este, contudo, não, este não, este não,
Este já não conseguimos ter forças para ler.
(1940)
Anna Akhmatova, Poemas (trad. Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev)
Anna Akhmatova
Perdoar-me-ás esses dias de Novembro?
Nos canais que vão ao Neva tremulam as luzes.
Do trágico outono são pobres os esplendores.
(Novembro de 1913, S. Petersburgo)
Acordar de madrugada
Pois a alegria sufoca,
E olhar pela vigia
Para as vagas de cor verde,
Ou no convés com mau tempo
Gasalhada em brandas peles,
Ouvir o bater da máquina,
E não pensar em nada,
Mas, pressentindo o encontro
Com esse que se tornou minha estrela,
Pelas gotas salgadas e o vento
Em cada hora rejuvenescer.
(Julho de 1917, Slepnevo)
Anna Akhmatova, Poemas (trad. Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev)
Nos canais que vão ao Neva tremulam as luzes.
Do trágico outono são pobres os esplendores.
(Novembro de 1913, S. Petersburgo)
´´´´´´´
Pois a alegria sufoca,
E olhar pela vigia
Para as vagas de cor verde,
Ou no convés com mau tempo
Gasalhada em brandas peles,
Ouvir o bater da máquina,
E não pensar em nada,
Mas, pressentindo o encontro
Com esse que se tornou minha estrela,
Pelas gotas salgadas e o vento
Em cada hora rejuvenescer.
(Julho de 1917, Slepnevo)
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27 novembro, 2015
25 novembro, 2015
Marina Tsvetáeva
Não verás a visita da noite...
Para sempre, perdoa e adormece
No abrigo a toda a prova
Daquesta luz impossível.
Mas se - não julgues que te ilude
O ouvido! - a que te ama -
Se apartar um pouco, se a noite
For pranto, e a cítara - for peito...
Isso é o meu amante, de louros
Na fronte, que virou os cavalos para fora
Da liça. São ciúmes de Deus
Pela sua favorita.
Marina Tsvetáeva, Depois da Rússia (trad.Nina Guerra e Filipe Guerra)
Para sempre, perdoa e adormece
No abrigo a toda a prova
Daquesta luz impossível.
Mas se - não julgues que te ilude
O ouvido! - a que te ama -
Se apartar um pouco, se a noite
For pranto, e a cítara - for peito...
Isso é o meu amante, de louros
Na fronte, que virou os cavalos para fora
Da liça. São ciúmes de Deus
Pela sua favorita.
Marina Tsvetáeva, Depois da Rússia (trad.Nina Guerra e Filipe Guerra)
24 novembro, 2015
Marina Tsvetáeva
Para não me veres -
Na vida - cinjo-me da cerca
Invisível e penetrante.
Cinjo-me da madressilva,
Cubro-me do algodão da geada.
Para não me ouvires
Na noite - com manha de velha
Me dissimulo - e me protejo.
Cinjo-me do restolhar,
Cubro-me de ramagens.
Para que não floresças muito
Em mim - nos silvados: enterro-me
Nos livros ainda em vida:
Cinjo-te de fantasias,
Cubro-te de ilusões.
Marina Tsvetáeva, Depois da Rússia (trad.Nina Guerra e Filipe Guerra)
Na vida - cinjo-me da cerca
Invisível e penetrante.
Cinjo-me da madressilva,
Cubro-me do algodão da geada.
Para não me ouvires
Na noite - com manha de velha
Me dissimulo - e me protejo.
Cinjo-me do restolhar,
Cubro-me de ramagens.
Para que não floresças muito
Em mim - nos silvados: enterro-me
Nos livros ainda em vida:
Cinjo-te de fantasias,
Cubro-te de ilusões.
Marina Tsvetáeva, Depois da Rússia (trad.Nina Guerra e Filipe Guerra)
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22 novembro, 2015
21 novembro, 2015
20 novembro, 2015
19 novembro, 2015
Piet e Doris
Doris
Lessing
18 novembro, 2015
invincible été
17 novembro, 2015
Heiner e Paulo
Em verdade, ele viveu em tempo de trevas.
Os tempos ganharam em luz.
Os tempos ganharam em trevas.
Quando a luz diz: Eu sou as trevas,
Disse a verdade.
Quando as trevas dizem: eu sou
A luz, não mentem.
Os tempos ganharam em luz.
Os tempos ganharam em trevas.
Quando a luz diz: Eu sou as trevas,
Disse a verdade.
Quando as trevas dizem: eu sou
A luz, não mentem.
Francesca e Simone
16 novembro, 2015
Outono e seda e nada
13 novembro, 2015
Helene e Paul
12 novembro, 2015
11 novembro, 2015
Cy e Jean
Cy Twombly |
O anjo não se preocupava muito com a minha revolta.
Eu só era o seu veículo, e ele tratava-me como veículo.
Jean Cocteau, O Livro Branco
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09 novembro, 2015
Cy e Pablo
Cy Twombly, Untitled, 2001 |
Amo-te sem saber como, ou quando, ou onde. Amo-te simplesmente, sem
problemas ou orgulho; amo-te desta maneira porque não conheço outra forma de
amar que não esta, na qual não existe eu ou tu, tão íntima que a tua mão no meu
peito é a minha mão, tão íntima que quando adormeço os teus olhos fecham.
Pablo Neruda
Pablo Neruda
08 novembro, 2015
07 novembro, 2015
Bruno Munari
“Não podendo mudar os adultos, escolhi trabalhar com as crianças para que cresçam melhores (adultos). É uma estratégia revolucionária a de trabalhar sobre e com as crianças enquanto futuros homens. Temos de nos ocupar das crianças e dar-lhes a possibilidade de se formarem com uma mente mais elástica, mais livre, menos bloqueada, capaz de tomar decisões. E, direi, também um método para enfrentar a realidade, seja como desejo de compreensão como de expressão. Portanto, com este objectivo, devem ser estudados aqueles instrumentos que passam sob a forma de jogo mas que, na realidade, ajudam o homem a libertar-se.” B.M.
“Estamos a fazer uma revolução, mas atenção, digamo-lo em voz baixa, podem ouvir-nos. Uma criança criativa será um adulto, uma pessoa livre, uma pessoa perigosa…” B.M.
Beba Restelli, Giocare con il tatto, 2002 (il mio encontro con Bruno Munari)
Bruno Munari, Imagens da Realidade, 1977 |
06 novembro, 2015
Bernd e Hilla Becher
05 novembro, 2015
Zang e Lawrence
02 novembro, 2015
Joan, Helen e Grace
01 novembro, 2015
Thomas e Hannah
31 outubro, 2015
injustificável alegria
Um dos textos mais
comoventes que conheço é a carta de Rosa de Luxemburgo escrita a uma amiga sua
quando estava na prisão de Breslavia, poucos meses antes da sua execução.
Trata-se de um extraordinário hino à vida. No meio daquele horror, sentindo
abater-se sobre ela toda a desolação e desconforto que podemos imaginar (ou que
nem podemos imaginar), Rosa de Luxemburgo não deixa de confiar na vida.
Mergulhada no escuro ela continua a sorrir. E quando se pergunta porquê, escreve isto: "não tenho razão
para esta injustificável alegria, nem sei de outro segredo senão a própria
vida. A profunda obscuridade da noite é bela e suave como um veludo para os que
aprendem a olhá-la".
José Tolentino Mendonça, CÃO CELESTE Nº 7
Lothar Reichel, c.1970 |
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30 outubro, 2015
Emily e Jackson
I
know nothing in the world that has as much power as a word. Sometimes I write
one, and I look at it, until it begins to shine.
Emily Dickinson
Jackson Pollock, Galaxy, 1947 |
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26 outubro, 2015
25 outubro, 2015
Ingeborg Bachmann
Por onde quer que nos voltemos na tempestade de rosas,
a noite ilumina-se de espinhos, e o trovão
da folhagem, antes tão leve nos arbustos,
segue-nos agora de perto.
Onde quer que se apague o incêndio das rosas,
a chuva inunda-nos o rio. Oh noite tão distante!
Mas uma folha que nos encontrou é levada pelas ondas
e segue-nos até à foz.
Ingeborg Bachmann, O Tempo Aprazado
a noite ilumina-se de espinhos, e o trovão
da folhagem, antes tão leve nos arbustos,
segue-nos agora de perto.
Onde quer que se apague o incêndio das rosas,
a chuva inunda-nos o rio. Oh noite tão distante!
Mas uma folha que nos encontrou é levada pelas ondas
e segue-nos até à foz.
Ingeborg Bachmann, O Tempo Aprazado
24 outubro, 2015
Sonhai, que sois sonhados.
António Cândido Franco, Arte de Sonhar
António Cândido Franco, Arte de Sonhar
Robert Rauschenberg, s/título, 1951 |
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R
23 outubro, 2015
azul-vermelho
Ninguém no caminho, e nada, nada a não ser amoras,
amoras dos dois lados, embora mais à direita,
uma álea de amoras, descendo em curvas fechadas, e um mar
algures, lá ao longe, arfando. Amoras
tão grandes como a cabeça do meu polegar, e mudas como olhos
negros nas sebes, repletas
de um suco azul-vermelho. Este desperdiça-se nos meus dedos.
Não pedira tal comunhão de sangue; devem amar-me.
Comprimem-se numa garrafa de leite, de encontro aos seus lados.
Sobre mim passam, com a sua cacofonia, os corvos em bandos negros,
pedaços de papel queimado oscilando num céu ventoso.
A sua voz é a única que está a protestar, a protestar.
Julgo que o mar não vai mesmo aparecer.
Os verdes e altos prados brilham como iluminados por dentro.
Chego a um arbusto de bagas tão maduras: é um arbusto de moscas,
suspendendo os seus abdómens azuis esverdeados e os vidrilhos alados de um biombo chinês.
O festim de mel das bagas surpreendeu-as; julgam-se no paraíso.
Para além de uma curva, as bagas e os arbustos acabam.
A única coisa que vem a seguir é o mar.
De entre duas colinas sopra contra mim um vento súbito,
sacudindo como fantasmas a sua roupa branca contra o meu rosto.
Estas colinas são demasiado verdes e suaves para terem saboreado o sal.
Sigo, entre elas, a vereda aberta pelas ovelhas. Uma última curva leva-me
até à face norte das colinas, e a face é uma rocha alaranjada
que olha para nada, nada a não ser uma grande extensão
de luzes brancas e cor de estanho e um ruído como o de um ourives
batendo sempre um metal rebelde.
Sylvia Plath, Pela Água, trad. Mª de Lourdes Guimarães
amoras dos dois lados, embora mais à direita,
uma álea de amoras, descendo em curvas fechadas, e um mar
algures, lá ao longe, arfando. Amoras
tão grandes como a cabeça do meu polegar, e mudas como olhos
negros nas sebes, repletas
de um suco azul-vermelho. Este desperdiça-se nos meus dedos.
Não pedira tal comunhão de sangue; devem amar-me.
Comprimem-se numa garrafa de leite, de encontro aos seus lados.
Sobre mim passam, com a sua cacofonia, os corvos em bandos negros,
pedaços de papel queimado oscilando num céu ventoso.
A sua voz é a única que está a protestar, a protestar.
Julgo que o mar não vai mesmo aparecer.
Os verdes e altos prados brilham como iluminados por dentro.
Chego a um arbusto de bagas tão maduras: é um arbusto de moscas,
suspendendo os seus abdómens azuis esverdeados e os vidrilhos alados de um biombo chinês.
O festim de mel das bagas surpreendeu-as; julgam-se no paraíso.
Para além de uma curva, as bagas e os arbustos acabam.
A única coisa que vem a seguir é o mar.
De entre duas colinas sopra contra mim um vento súbito,
sacudindo como fantasmas a sua roupa branca contra o meu rosto.
Estas colinas são demasiado verdes e suaves para terem saboreado o sal.
Sigo, entre elas, a vereda aberta pelas ovelhas. Uma última curva leva-me
até à face norte das colinas, e a face é uma rocha alaranjada
que olha para nada, nada a não ser uma grande extensão
de luzes brancas e cor de estanho e um ruído como o de um ourives
batendo sempre um metal rebelde.
Sylvia Plath, Pela Água, trad. Mª de Lourdes Guimarães
22 outubro, 2015
Sylvia Plath
Lá no alto, num ramo firme
arqueia-se uma gralha negra toda molhada
arranjando e voltando a arranjar as penas à chuva.
Não espero nada
que venha lançar fogo à paisagem
no interior dos meus olhos, nem procuro
mais no tempo inconstante qualquer desígnio,
mas deixo as folhas manchadas cair conforme caem,
sem cerimónia ou maravilha.
Embora - admito-o - deseje
ocasionalmente alguma resposta
do céu mudo, não posso honestamente queixar-me:
uma certa luz pode ainda
surgir incandescente
da mesa da cozinha ou da cadeira
como se um fogo celestial tornasse
seu, de um instante para o outro, os mais estranhos objectos,
assim consagrando um intervalo
de outro modo inconsequente
por nos dar grandeza e glória,
ou até amor. De qualquer modo, caminho agora
atenta (pois isso poderia acontecer
mesmo nesta paisagem triste e arruinada); descrente,
mas astuta, ignorante
de que um anjo se decida a resplandecer
repentinamente a meu lado. Apenas sei que uma gralha
ordenando as suas penas negras pode brilhar
de tal maneira que prenda a minha atenção, erga
as minhas pálpebras, e conceda
um breve repouso com medo
de uma neutralidade total. Com sorte,
viajando teimosamente por esta estação
de fadiga, acabarei
por juntar um conjunto
de coisas. Os milagres acontecem
se gostares de invocar aqueles espasmódicos
gestos de luminosos milagres. A espera recomeçou de novo,
a longa espera pelo anjo,
por essa rara, fortuita visita.
Sylvia Plath, Pela Água, trad. Mª de Lourdes Guimarães
arqueia-se uma gralha negra toda molhada
arranjando e voltando a arranjar as penas à chuva.
Não espero nada
que venha lançar fogo à paisagem
no interior dos meus olhos, nem procuro
mais no tempo inconstante qualquer desígnio,
mas deixo as folhas manchadas cair conforme caem,
sem cerimónia ou maravilha.
Embora - admito-o - deseje
ocasionalmente alguma resposta
do céu mudo, não posso honestamente queixar-me:
uma certa luz pode ainda
surgir incandescente
da mesa da cozinha ou da cadeira
como se um fogo celestial tornasse
seu, de um instante para o outro, os mais estranhos objectos,
assim consagrando um intervalo
de outro modo inconsequente
por nos dar grandeza e glória,
ou até amor. De qualquer modo, caminho agora
atenta (pois isso poderia acontecer
mesmo nesta paisagem triste e arruinada); descrente,
mas astuta, ignorante
de que um anjo se decida a resplandecer
repentinamente a meu lado. Apenas sei que uma gralha
ordenando as suas penas negras pode brilhar
de tal maneira que prenda a minha atenção, erga
as minhas pálpebras, e conceda
um breve repouso com medo
de uma neutralidade total. Com sorte,
viajando teimosamente por esta estação
de fadiga, acabarei
por juntar um conjunto
de coisas. Os milagres acontecem
se gostares de invocar aqueles espasmódicos
gestos de luminosos milagres. A espera recomeçou de novo,
a longa espera pelo anjo,
por essa rara, fortuita visita.
Sylvia Plath, Pela Água, trad. Mª de Lourdes Guimarães
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