12 julho, 2017

Giánnis Ritsos



















As palavras têm outra casca
lá mais para dentro
como as amêndoas 
e a paciência.


Giánnis Ritsos, em Poesia-Mais-Que-Perfeita (trad. Alda Leal)

poetas que se reconhecem



Facilmente, entre eles, os poetas se reconhecem - não
por grandes palavras que deslumbram as pessoas, não
por gestos retóricos, apenas por algo
completamente trivial, de místicas dimensões, como Ifigénia
reconheceu imediatamente Orestes, mal ele lhe disse:
"Não eras tu que bordavas, no pátio, à sombra do choupo,
com belas cores, com alva tela,
o movimento errante do sol?" E ainda:
"Não estava a um canto do teu quarto, guardada,
a velha lança de Pélope?" E então ela
logo se inclinou sobre o seu ombro, cerrando os olhos,
a uma luz profunda, doce, como se o ensanguentado altar
ficasse todo coberto com essa alva tela que ela mesmo bordava
à sombra do choupo, nos quentes meios-dias, na pátria.

Giánnis Ritsos, em Poesia-Mais-Que-Perfeita (trad. Alda Leal)

11 julho, 2017

Insaciável a dar

Insaciável a dar - algumas vezes até coisas
que não lhe pertenciam - como aquela montanha, por exemplo,
cor de malva no crepúsculo, com árvores de esmeralda, gravada
em vapores doirados: ou a sombra da andorinha nas espigas,
ou a forquilha caída, à noite, frente à cancela do jardim,
ou cabelos da bela mulher no acto de dizer "não".
Quanto às suas coisas - quais suas coisas? - não ficava com nenhuma;
Mantinha-se do que dava. E quando, alguma vez,
já nada tinha, cerrava os olhos, esperando
inventar algo muito maior do que ele próprio, e dá-lo.
Precisamente então, sentia que ele era aquele.

Giánnis Ritsos, em Poesia-Mais-Que-Perfeita (trad. Alda Leal)

10 julho, 2017

Giánnis Ritsos


Creio na poesia, no amor, na morte,
e por isso mesmo creio na imortalidade. Escrevo um verso,
escrevo o mundo: existo; existe o mundo.
Da ponta do meu dedo mínimo corre um rio.
O céu é sete vezes azul. Esta pureza
é de novo a primeira verdade; a minha última vontade.



Giánnis Ritsos, em Poesia-Mais-Que-Perfeita (trad. Alda Leal)

25 junho, 2017

Ana Cristina César

olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas



Ana Cristina César, Poética

24 junho, 2017

Mbate Pedro



oh como são inúteis e reluzentes os materiais do amor

Mbate Pedro, Vácuos



Cristina Tavares, Blurred Freesias, 2017

23 junho, 2017

Mbate Pedro

procuro uma mulher febril que saiba entrar dentro do meio-dia e espantar-se

Mbate Pedro, Vácuos



Ellsworth Kelly, Cyclamen (detalhe), c.1964-65




21 junho, 2017

Matisse a pintar

Matisse a pintar, fotógrafo desconhecido, c.1919

20 junho, 2017

Annegret Soltau

Annegret Soltau, Selbest, 1975

19 junho, 2017

André Malraux

Maurice Jarnoux,André Malraux seleccionando fotografias para O Museu Imaginário, c.1947

18 junho, 2017

Michaux e Remarque


Henri Michaux, s/ título, 1960
















Estamos desamparados como as crianças e experientes como os velhos: somos grosseiros, tristes e superficiais; creio que estamos perdidos.

Erich Maria Remarque, A Oeste Nada de Novo (trad. Mário C. Pires)




Henri Michaux, s/ título, c. 1950

17 junho, 2017

Rita e Henri


Hei de inventar outro nome para isso que morre
na virada do dia e renasce bicho difuso, ainda sem
penugem, sem consciência
da metamorfose que guarda em si.


Rita Isadora Pessoa

Matisse, Roses

16 junho, 2017

15 junho, 2017

Noémia de Sousa





















Noite morna de Moçambique
e sons longínquos de marimba chegam até mim
- certos e constantes -
vindos nem eu sei de onde.
Em minha casa de madeira e zinco,
abro o rádio e deixo-me embalar...
Mas vozes da América remexem-me a alma e os nervos.
E Robeson e Maria cantam para mim
spituals negros de Harlém.
Let my people go
- oh deixa passar o meu povo,
deixa passar o meu povo -,
dizem.

(...)


~~



Um só ínfimo grão d'areia

nunca imaginei
pesar tanto.


Noémia de Sousa, Sangue Negro



13 junho, 2017

home 90

CT, para Antónia, 2016

11 junho, 2017

Elisabeth Pulman

Elisabeth Pulman,The Maori girls Hereni and Rowanga, 1889

Zbigniew Herbert



Vivo em várias épocas como um insecto no âmbar, imóvel e por isso fora do tempo, porque os meus membros não se mexem nem projectam nenhuma sombra na parede, submerso  numa cave como no âmbar imóvel e por isso inexistente.

Vivo em várias épocas, imóvel mas provido de todos os movimentos, porque habito no espaço e pertenço-lhe e tudo o que é espaço concede-me o seu toque, uma forma transitória.

Vivo em várias épocas, inexistente, dolorosamente imóvel e dolorosamente móvel e na verdade desconheço o que me é dado e o que me é retirado para sempre.


Zbigniew Herbert, Escolhido pelas Estrelas (trad. Jorge de Sousa Braga)

05 junho, 2017

Mbate Pedro



não esperar para além da fecundidade do não pedido


Mbate Pedro, Vácuos

03 junho, 2017

Zbigniew Herbert

Ardente e lívido
Santo Inácio
passou por um jardim de rosas
e atirou-se
para cima delas
ficando todo ferido

com a campainha do seu hábito negro
queria extinguir
a beleza do mundo
que brota da terra como duma ferida

e enquanto jazia
no leito de espinhos
viu
que o sangue que lhe escorria da testa
coagulava nas suas pestanas
na forma de uma rosa

e a mão cega
que procurava os espinhos
cedia
ao doce contacto das pétalas

defraudado o santo
chorava da troça das rosas

espinhos e rosas
rosas e espinhos
todos procuramos a felicidade

Zbigniew Herbert, Escolhido pelas Estrelas (trad. Jorge de Sousa Braga)