31 outubro, 2013

"Há dias em que os deuses falam ao meu coração imundo. Eu não sei se Deus existe. Jamais me foi dado contemplar a sombra da sua face. As suas mãos não descem à noite sobre as minhas pálpebras, trazendo apaziguamento às insónias que me devoram. Pela manhã ninguém me diz: Levanta-te e Caminha."


Primeiras linhas de
Sapos Vivos e Outros Monstros
Maria Regina Louro
Relógio D'Água, 1984

30 outubro, 2013

"Na cozinha, ele serviu-se de uma bebida e olhou para a mobília de quarto de cama que estava no pátio da frente.
O colchão estava a descoberto e os lençóis às riscas estavam em cima da cómoda, ao lado de dois travesseiros. Fora isso as coisas estavam na mesma como quando estavam no quarto de cama: mesinha-de-cabeceira e candeeiro de leitura, do lado dele da cama, mesinha-de-cabeceira e candeeiro de leitura, do lado dela.
O lado dele; o lado dela.
Ele ficou a pensar nisso, enquanto bebia o uísque."


Primeiras linhas de
"De Que Falamos Quando Falamos de Amor"
Raymond Carver
trad. Carlos Santos
Teorema, 1987

29 outubro, 2013

"O coronel destapou a caixa do café e verificou que não havia mais que uma colherinha. Tirou a panela do fogão, despejou metade da água no chão de terra, e com uma faca raspou o interior da caixa para dentro da panela até se soltarem as últimas raspas de pó de café misturadas com ferrugem da lata.
Ao esperar que fervesse a infusão, sentado junto ao fogareiro de barro numa atitude de confiada e inocente expectativa, o coronel teve a sensação de que lhe nasciam fungos e lírios venenosos nas tripas. Era Outubro.


Primeiras linhas de 
"Ninguém Escreve Ao Coronel"
Gabriel Garcia Márquez
Biblioteca Visão, 2000

28 outubro, 2013

"Não é preciso ser muito sagaz para saber que uma raposa é mais esperta do que uma minhoca, mas é necessário ser mais do que sagaz para saber o que isso significa, se é que isso significa alguma coisa. Atribuímos inteligência a homens, animais, computadores, e ultimamente, começámos a falar de edifícios inteligentes, de automóveis inteligentes e até de esquentadores ou cafeteiras inteligentes. Por este andar a inteligência vai estar tão disseminada à nossa volta, integrada com tanta eficácia nos objectos de uso corrente, que nos permitirá o supremo prazer de voltarmos a ser estúpidos e de gostarmos de o ser."


Primeiras linhas de
"Teoria da Inteligência Criadora"
José Antonio Marina
trad. Fernando Moutinho
Caminho, 1995

27 outubro, 2013

"Deitado de bruços, sobre a caruma do pinhal, ele ouvia o vento soprar entre a ramaria das árvores. A encosta da montanha, no ponto em que repousava, tinha pouco declive, mas mais abaixo tornava-se íngreme e ele via a curva negra da estrada alcatroada que seguia o desfiladeiro."


Primeiras linhas de 
"Por Quem Os Sinos Dobram"
Ernest Hemingway
trad. Monteiro Lobato
Livros do Brasil, s/d

26 outubro, 2013

"Um sábio disse uma vez que, para além de perder a mãe, não há nada mais saudável para uma criança do que perder o pai. Embora, com toda a franqueza, eu jamais pudesse subscrever semelhante afirmação, seria a última pessoa a rejeitá-la liminarmente. Naquilo que me diz respeito, se enunciasse uma doutrina do género, então não denotaria qualquer vestígio de amargura em relação ao mundo, ou melhor dito, não traria comigo a mágoa que implica o mero som destas palavras."


Primeiras linhas de
"Os Peixes Também Sabem Cantar"
Halldór Laxness
trad. Mário Cruz e João Cruz
Cavalo de Ferro, 2010

25 outubro, 2013

"Eu bem n'a sinto! Eu bem n'a sinto! apesar das fuligens do céo mal humorado, e da ventania que me apupa, atravez das frinchas das janellas. Uma pulsação vigora as alamedas, nas ascendencias inexhauriveis da seiva, rebentando em folhagens de contextura fina, por fórma que já não é ficção o caso do homem que ouvia crescer herva nos campos, visto que eu ha quinze dias oiço, no recanto do parque onde vivo, sob uma umbella vermelha de paisagista, o borborinho da natureza que se revigora e emplumesce, n'uma dessas orgias de côr que faziam rir o olho azul de Rousseau,"


Primeiras linhas de
"O Paiz das Uvas"
Fialho d'Almeida
Livraria Clássica Editora, 1913

24 outubro, 2013

"Alvy Singer, sobre um fundo neutro, fala para a câmara.
Alvy: Vou contar-lhes uma velha anedota. Hum, duas velhotas estão numa pousada de Catskill Mountain e uma delas diz: "Hei, a comida aqui é mesmo horrível." Responde a outra: "Sim, eu sei,  e ainda por cima as doses são tão pequenas..." Bem, é assim que eu, de uma forma essencial, sinto a vida. Cheia de solidão, de tristeza, de sofrimento e de infelicidade, e tudo passa demasiadamente depressa."


Primeiras linhas de
Annie Hall
Woody Allen
trad. Luís de Almeida Campos
Bertrand Editora, 1989

22 outubro, 2013

"A Casa é uma teoria volumétrica por entre a vegetação, maior do que todo o Mundo, impossível de arrumar. Por torres e telhados se levanta, paredes de cal alternando com panos de muralha, e um bestiário a habita, nela cirandando ou em torno lhe correndo, heráldicos bichos esguios, indistintos da paisagem. Na construção, que não obedece aos caracteres do meio, um pouco ao revés de certa convicção de sangue da família, a vida se concentra na cozinha que ele virá a pintar."


Primeira linhas de 
"Amadeo"
Mário Cláudio
Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1986

20 outubro, 2013

"Sei que me vão censurar. Mas que hei-de eu fazer? Será culpa minha ter tido doze anos alguns meses antes da declaração de guerra? É certo que as perturbações que me causou este período extraordinário foram daquelas que nunca se sentem nesta idade; mas como não há nada tão forte que seja capaz de nos tornar mais velhos, mesmo que se aparente o contrário, foi como uma criança que tive de enfrentar uma aventura em que um homem se teria visto em embaraços. Mas não sou o único: os meus contemporâneos devem ter ficado com uma recordação desta época que não é a mesma da dos seus irmãos mais velhos. Que aqueles que já me estão a julgar mal se compenetrem bem do que foi a guerra para tantos rapazes: quatro anos e férias grandes."


Primeiras linhas de
"Com o Diabo no Corpo"
Raymond Radiguet
trad. Guilherme de Castilho
Contexto Editora, 1986

19 outubro, 2013

"Isto aconteceu nos anos em que seguramente ainda estávamos vivos. O mês de Março e o mundo branco com neve, embora não de um branco puro, independentemente de quanta neve caia, mesmo que o céu e o mar congelem e o frio penetre até ao coração onde os sonhos habitam, a cor branca nunca vence."


Primeiras linhas de
"Paraíso e Inferno"
Jon Kalman Stefánnsson
Cavalo de Ferro, 2013

18 outubro, 2013

"Eu tinha vinte anos e não permitia que ninguém dissesse ser essa a mais bela idade da vida.
Tudo ameaça de ruína um jovem: o amor, as ideias, a perda da família, o ingresso entre os grandes. É muito duro obter a sua parte do mundo"


Primeiras linhas de 
Aden - Arábia
Paul Nizan
trad. José Borrego
Editorial Estampa, 1991

17 outubro, 2013

"A taberna era barulhenta, escura e suja. Por detrás dos bancos, gerações de costas tinham manchado de porcaria os frescos da parede. Candelabros cobertos de cera amarela cortavam com a luz vacilante as trevas cheias de fumo. Sobre as lajes escorregadias, uma serradura de oito dias não chegava para absorver o cuspo do tabaco de mascar nem o caldo das gamelas entornadas.
Naquele buraco nojento, cinquenta vozes aninhadas berravam ao mesmo tempo. Os gritos dos jogadores de dados cruzavam-se com os pedidos de bebida, vagas discussões saíam de bocas desdentadas, punhos pesados martelavam sobre o carvalho enegrecido verdades absolutas que ninguém ouvia.
Olivier estava encantado."


Primeiras linhas de
"Os Revoltosos de Libertália"
Daniel Vaxelaire
trad. Maria Manuel Tinoco
Publicações Europa-América, 1997

16 outubro, 2013

"Há muitas e muitas luas, um dólar eram 870 liras e eu era um homem de trinta e dois anos. Também o mundo era mais leve, dois biliões de almas mais leve, e o bar da stazione a que eu chegara nessa fria noite de Dezembro estava vazia. Fiquei ali parado, à espera da única pessoa que conhecia na cidade. Ela chegou bastante atrasada."


Primeiras linhas de 
"Marca de Água"
Joseph Brodsky
D. Quixote, 1993

15 outubro, 2013

"O que mais há na terra é paisagem. Por muito que do resto lhe falte, a paisagem sempre sobrou, abundância que só por milagre infatigável se explica, porquanto a paisagem é sem dúvida anterior ao homem, e apesar disso, de tanto existir, não se acabou ainda."


Primeiras linhas de
"Levantado do Chão"
José Saramago
Editorial Caminho, 1986

14 outubro, 2013

"Era uma vez um rapaz chamado João que vivia em Chora-Que-Logo-Bebes, exígua aldeia aninhada perto do Muro construído em redor da Floresta Branca onde os homens, perdidos dos enigmas da infância, haviam instalado uma espécie de Parque de Reserva de Entes Mágicos."


Primeiras linhas de
"Aventuras de João Sem Medo"
José Gomes Ferreira
D. Quixote, 2003

13 outubro, 2013

"Chegámos esta manhã e fomos mal recebidos porque na praia não estava ninguém, só uma porção de tipos mortos ou bocados de tipos, tanques e camiões desfeitos. Um pouco de todo o lado apareciam balas numa destas confusões que não me agradam muito."


Primeiras linhas de
"As Formigas"
Boris Vian
trad. Aníbal Fernandes
Assírio e Alvim, 1985

12 outubro, 2013

"Os dedos grossos passaram automàticamente no trinco da fechadura, no orifício da chave, na lingueta. Depois a mão empurrou a porta de vagar e verificou se ficava fechada.
Fazia sempre assim desde o dia em que a porta aparecera aberta sem se saber como. Entrara, estivera às voltas no quarto um grande bocado e de repente ouvira um ruído muito nítido no corredor."


Primeiras linhas de
"O Dia Cinzento"
Mário Dionísio
Coimbra Editora, 1944

10 outubro, 2013

" O morgado Trelaway, o Dr. Livesey e outros senhores pediram-me que escrevesse tudo o que sabia sobre a Ilha do Tesouro, desde o princípio até ao fim, sem omitir nada, excepto a  localização da ilha, porque há nela um tesouro que ainda não foi retirado. Peguei, pois, na pena, no ano da graça de 17... e recuei ao tempo em que o meu pai tinha a Estalagem do Almirante Benbow e em que um velho marinheiro, com uma cicatriz de cutilada no rosto, se instalou em nossa casa."


Primeiras linhas de
"A Ilha do Tesouro"
Robert Louis Stevenson
D. Quixote, 1995

09 outubro, 2013

"Vivemos no meio de um logro magistral, de um mundo desaparecido que nos recusamos a reconhecer como tal, e que políticas artificiais pretendem perpetuar. Milhões de destinos são devastados e aniquilados por esse anacronismo, devido a estratagemas tenazes destinados a dar como imperecível o nosso tabu mais sagrado: o do trabalho.
Desviado sob a forma perversa de "emprego", o trabalho dá de facto fundamento à civilização ocidental, que domina por inteiro o planeta."


Primeiras linhas de 
"O Horror Económico"
Viviane Forrestier
trad. Ana Barradas
Terramar, 1997