Fluência
Eu fiz um livro, mas oh meu Deus,
não perdi a poesia.
Hoje depois da festa,
quando me levantei para fazer café,
uma densa neblina acizentava os pastos,
as casas, as pessoas com embrulho de pão.
O fio indesmanchável da vida tecia seu curso.
Persistindo, a necessidade dos relógios,
dos descongestionantes nasais.
Meu livro sobre a mesa contraponteava exato
com os pardais, os urinóis pela metade,
o antigo e intenso desejar de um verso.
O relógio bateu sem assustar os farelos sobre a mesa.
Como antes, graças a Deus.
Adélia Prado, Com Licença Poética
15 março, 2015
14 março, 2015
Adélia
Era um quintal ensombrado, murado alto de pedras.
As macieiras tinham maçãs temporãs, a casca vermelha
do escuríssimo vinho, o gosto caprichado das coisas
fora de seu tempo desejadas.
Ao longo do muro eram talhas de barro.
Eu comia maçãs, bebia a melhor água, sabendo
que o mundo lá fora havia parado de calor.
Depois encontrei meu pai, que me fez festa
e não estava doente e nem tinha morrido, por isso ria,
os lábios de novo e a cara circulados de sangue,
caçava o que fazer pra gastar sua alegria:
onde está meu formão, minha vara de pescar,
cadê minha binga, meu vidro de café?
Eu sempre sonho que uma coisa gera,
nunca nada está morto.
O que não está vivo, aduba.
O que está estático, espera.
Adélia Prado, Com Licença Poética
As macieiras tinham maçãs temporãs, a casca vermelha
do escuríssimo vinho, o gosto caprichado das coisas
fora de seu tempo desejadas.
Ao longo do muro eram talhas de barro.
Eu comia maçãs, bebia a melhor água, sabendo
que o mundo lá fora havia parado de calor.
Depois encontrei meu pai, que me fez festa
e não estava doente e nem tinha morrido, por isso ria,
os lábios de novo e a cara circulados de sangue,
caçava o que fazer pra gastar sua alegria:
onde está meu formão, minha vara de pescar,
cadê minha binga, meu vidro de café?
Eu sempre sonho que uma coisa gera,
nunca nada está morto.
O que não está vivo, aduba.
O que está estático, espera.
Adélia Prado, Com Licença Poética
13 março, 2015
Hölderlin
Para onde irei eu?
Vivem os mortais
De soldo e trabalho;
Alternando em fadiga e repouso
Tudo se alegra; porque não dorme então
Nunca em meu peito o espinho?
Hölderlin, Poemas, trad. Paulo Quintela
Vivem os mortais
De soldo e trabalho;
Alternando em fadiga e repouso
Tudo se alegra; porque não dorme então
Nunca em meu peito o espinho?
Hölderlin, Poemas, trad. Paulo Quintela
10 março, 2015
E e E
One need not be a
chamber to be haunted.
Não precisamos de ser um quarto para se ser assombrado.
Emily Dickinson , trad. © Cristina Tavares, 2015
Ellsworth Kelly, Flower Drawing |
Etiquetas:
E,
Elas,
Emily Dickinson,
oxigénio,
Traduzir Emily
07 março, 2015
04 março, 2015
03 março, 2015
02 março, 2015
Ode a Walt Witman
(...)
E tu, belo Walt Witman, dorme nas margens do Hudson
com a barba virada ao pólo e as mãos abertas.
Argila branca ou neve, a tua língua chama
camaradas que velem tua gazela sem corpo.
Dorme,não fica nada.
Uma dança de muros agita as pradarias
e a América afoga-se em máquinas e pranto.
Quero que o ar forte da noite mais profunda
tire flores e letras do arco onde dormes
e um garoto negro anuncie aos brancos do oiro
a chegada do reino das espigas.
Federico Garcia Lorca, Poemas, trad. Eugénio de Andrade
E tu, belo Walt Witman, dorme nas margens do Hudson
com a barba virada ao pólo e as mãos abertas.
Argila branca ou neve, a tua língua chama
camaradas que velem tua gazela sem corpo.
Dorme,não fica nada.
Uma dança de muros agita as pradarias
e a América afoga-se em máquinas e pranto.
Quero que o ar forte da noite mais profunda
tire flores e letras do arco onde dormes
e um garoto negro anuncie aos brancos do oiro
a chegada do reino das espigas.
Federico Garcia Lorca, Poemas, trad. Eugénio de Andrade
01 março, 2015
28 fevereiro, 2015
Gazel da Morte Sombria
Quero dormir como dormem as maçãs,
afastar-me do tumulto dos cemitérios.
Quero dormir como dorme o garoto
que queria cortar o coração no mar alto.
Não quero que me repitam que os mortos não perdem o sangue;
que a boca podre continua a pedir água.
Não quero saber dos martírios que dá a relva,
nem da lua com boca de serpente
trabalhando antes de amanhecer.
Quero dormir um instante,
um instante, um minuto, um século;
mas que saibam todos que não morri;
que sou o pequeno amigo do vento Oeste,
que sou a sombra imensa de minhas lágrimas.
Cobre-me com um véu pela aurora,
porque me arrojará punhados de formigas,
molha com água dura os meus sapatos
para que a pinça do seu lacrau resvale.
Quero dormir como dormem as maçãs,
aprender um pranto que me limpe a terra;
quero viver como o garoto sombrio
que no mar alto queria cortar o coração.
Federico Garcia Lorca, Poemas, trad. Eugénio de Andrade
afastar-me do tumulto dos cemitérios.
Quero dormir como dorme o garoto
que queria cortar o coração no mar alto.
Não quero que me repitam que os mortos não perdem o sangue;
que a boca podre continua a pedir água.
Não quero saber dos martírios que dá a relva,
nem da lua com boca de serpente
trabalhando antes de amanhecer.
Quero dormir um instante,
um instante, um minuto, um século;
mas que saibam todos que não morri;
que sou o pequeno amigo do vento Oeste,
que sou a sombra imensa de minhas lágrimas.
Cobre-me com um véu pela aurora,
porque me arrojará punhados de formigas,
molha com água dura os meus sapatos
para que a pinça do seu lacrau resvale.
Quero dormir como dormem as maçãs,
aprender um pranto que me limpe a terra;
quero viver como o garoto sombrio
que no mar alto queria cortar o coração.
Federico Garcia Lorca, Poemas, trad. Eugénio de Andrade
Dois marinheiros na margem
Trouxe no seu coração
um peixe do Mar da China.
Às vezes vê-se passar
diminutos nos seus olhos.
Esquece, sendo marinheiro
os bares e as laranjas.
Olha a água.
Federico Garcia Lorca, Poemas, trad. Eugénio de Andrade
um peixe do Mar da China.
Às vezes vê-se passar
diminutos nos seus olhos.
Esquece, sendo marinheiro
os bares e as laranjas.
Olha a água.
Federico Garcia Lorca, Poemas, trad. Eugénio de Andrade
27 fevereiro, 2015
21 fevereiro, 2015
Blaise Cendrars
Depois no fim dum número de dias muito comprido...
Tínhamos mudado de casa
E os poucos quartos do nosso pequeno apartamento
estavam cheios de móveis
Já não estávamos na nossa vivenda da costa
Ficava sozinho dias inteiros
Entre móveis empilhados
Podia mesmo quebrar a loiça
Rasgar os cadeirões
Partir o piano...
Depois no fim dum número de dias muito comprido
Veio uma carta de um dos meus tios
Foi a derrocada do Panamá que fez de mim um poeta!
Tínhamos mudado de casa
E os poucos quartos do nosso pequeno apartamento
estavam cheios de móveis
Já não estávamos na nossa vivenda da costa
Ficava sozinho dias inteiros
Entre móveis empilhados
Podia mesmo quebrar a loiça
Rasgar os cadeirões
Partir o piano...
Depois no fim dum número de dias muito comprido
Veio uma carta de um dos meus tios
Foi a derrocada do Panamá que fez de mim um poeta!
Blaise Cendrars, Poesia em Viagem, trad.Liberto Cruz
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