Escuto mas não sei Se o que oiço é silêncio Ou deus Escuto sem saber se estou ouvindo O ressoar das planícies do vazio Ou a consciência atenta Que nos confins do universo Me decifra e me fita Apenas sei que caminho como quem É amado e conhecido E por isso em cada gesto ponho Solenidade e risco Sophia de Mello Breyner Andresen, Antologia(Círculo de Poesia, Moraes Editores, 1970)
Enquanto a lebre corta a meta como um tiro, a tartaruga pára uma vez mais à beira da estrada, desta vez para esticar o pescoço e mordiscar um pouco de erva fresca, ao contrário da anterior quando se distraiu com uma abelha zunindo no coração de uma flor selvagem. Billy Collins, Amor Universal (trad. Ricardo Marques)
Não muito tempo depois de nos termos sentado a jantar numa longa mesa de um restaurante em Chicago e de estarmos profundamente absortos nas pesadas ementas, um de nós - um homem barbudo com uma gravata colorida - perguntou se alguém já tinha considerado aplicar os paradoxos de Zenão ao martírio de S. Sebastião. As diferenças entre estas duas figuras eram muito maiores do que as diferenças entre o guisado de galinha e a truta com amêndoas entre os quais estava a hesitar, por isso olhei para cima e fechei a ementa. Se, continuou o homem da gravata, um objecto que se move através do espaço nunca vai chegar ao seu destino porque está sempre limitado a cortar a distância até ao seu alvo a meio, então verifica-se que S. Sebastião não morreu das feridas inflingidas pelas setas: a causa da morte foi o susto perante o espectáculo da sua aproximação. S. Sebastião, de acordo com Zenão, teria morrido de um ataque cardíaco. Acho que vou para a truta, disse ao empregado pois já era a minha vez de pedir, mas durante todo o elegante jantar continuei a pensar nas setas perpetuamente a aproximarem-se da carne pálida e trémula de S. Sebastião, uma revoada delas perpetuamente reduzindo a metade as curtas distâncias ao seu corpo, amarrado a um poste com uma corda, mesmo após os arqueiros terem arrumado tudo e ido para casa. E pensei na bala a nunca alcançar a mulher de William Burroughs, uma maçã tremendo-lhe sobre a cabeça, no ácido atirado a nunca chegar ao rosto daquela rapariga, e no Oldsmobile a nunca lançar o meu cão para uma vala. As teorias de Zenão flutuavam sobre a mesa como balões de pensamento vindos do século V antes de Cristo, e no entanto o garfo continuava a chegar à minha boca para entregar pedaços de espargo e peixe com crosta, e depois de comer e de brindar, saímos do restaurante e despedimo-nos na rua seguindo caminhos separados no mundo onde as coisas chegam mesmo a algum lado, onde as pessoas normalmente chegam ao sítio ao qual se dirigem - onde os comboios chegam à estação com uma nuvem de vapor, onde os gansos agitam a superfície do lago ao aterrarem, e a pessoa que tu amas atravessa a sala e chega aos teus braços - e sim, onde flechas afiadas podem perfurar um tronco, salpicando de sangue a virilha e os pés do santo, esse tema tão popular na pintura religiosa europeia. Um hagiógrafo comparou-o a um ouriço cravado de espinhos. Billy Collins, Amor Universal (trad. Ricardo Marques)
PARA UM LIVRO DE LEITURAS ESCOLARES não leias odes, meu filho, lê antes horários: são mais exactos. desenrola as cartas marítimas antes que seja tarde, toma cuidado, não cantes. o dia vem vindo em que hão-de outra vez pregar as listas nas portas e marcar a fogo o peito dos que digam não. aprende a passar despercebido, aprende mais do que eu: a mudar de bairro, de bilhete de identidade, de cara. treina-te nas pequenas traições, na mesquinha fuga quotidiana. úteis as encíclicas mas para acender o lume, e os manifestos são bons para embrulhar a manteiga e o sal dos indefesos. a cólera e a paciência são precisas para assoprar-se nos pulmões do poder o pó fino e mortal, moído por aqueles que aprenderam muito e são meticulosos, por ti.
Hans Magnus Enzensberger, em Poesia do Século XX (trad. Jorge de Sena)
é a última noite ponho-me a observar a palma da mão esquerda procuro nos tais sulcos da adivinhação do tempo a hora certa lá fora dispara o alarme de um carro e a palma da minha mão é só planura seja como for adormecer já não depende de mim. Frederico Mira George, Caixa Negra (1ºvol)