01 maio, 2020

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 23 Sylvia Plath

SOU VERTICAL
Mas preferia ser horizontal.
Não sou uma árvore com a raiz no solo
Sugando minerais e amor maternal
Para que em cada Março possa brilhar em folha,
Nem sou a beleza de um canteiro de jardim
Atraindo a minha cota de Ahs e espectacularmente pintada,
Sem saber que em breve terei de perder as pétalas.
Comparada comigo, uma árvore é imortal
E a cabeça de uma flor não é alta mas mais surpreendente
E quero a longevidade de uma e a audácia da outra.
Esta noite, à luz infinitesimal das estrelas,
as árvores e as flores têm espalhado os seus frescos odores.
Caminho entre elas, mas nenhuma repara.
Às vezes penso que é quando estou a dormir
Que mais me devo assemelhar a elas—
Pensamentos obscurecidos.
É mais natural para mim, estando deitada.
Então o céu e eu estamos em aberta conversa,
E serei útil quando me deitar finalmente:
Então as árvores podem por uma vez tocar-me, e as flores ter tempo para mim.
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........
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CRUZANDO AS ÁGUAS
Lago negro, barco negro, duas pessoas recortadas a negro.
Para onde vão as árvores negras que bebem aqui?
As suas sombras devem cobrir o Canadá.
Alguma luz filtra-se das flores aquáticas.
As suas folhas não desejam que nos apressemos:
São redondas e planas e cheias de sombrias recomendações.
Mundos frios sacodem-se do remo.
O espírito da escuridão está em nós, está nos peixes.
Uma raiz levanta uma mão pálida de despedida;
Estrelas abrem-se entre os lírios.
Não te cegam tais inexpressivas sereias?
Este é o silêncio das almas assombradas.


Sylvia Plath (EUA, 1932 - 1963)

(trad. Cristina Tavares /José Pinto de Sá)

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 22 Paul Éluard


LIBERDADE
Nos meus cadernos de escola
Na carteira e nas árvores
Na areia e na neve
Escrevo o teu nome
Em todas as páginas lidas
Em todas as páginas em branco
Pedra sangue papel ou cinza
Escrevo o teu nome
Nas imagens douradas
Nas armas dos guerreiros
Na coroa dos reis
Escrevo o teu nome
Na selva e no deserto
Nos ninhos nas giestas
No eco da minha infância
Escrevo o teu nome
Nas maravilhas das noites
No pão branco dos dias
Nas estações em noivado
Escrevo o teu nome
Nos meus retalhos de céu
No charco sol bafiento
No lago lua viva
Escrevo o teu nome
Nos campos no horizonte
Nas asas dos pássaros
E no moinho das sombras
Escrevo o teu nome
Em cada sopro de aurora
No mar nos barcos
Na montanha demente
Escrevo o teu nome
Na espuma das nuvens
Nos suores da trovoada
Na chuva espessa e enfadonha
Escrevo o teu nome
Nas formas cintilantes
Nos sinos das cores
Na verdade física
Escrevo o teu nome
Nos trilhos despertos
Nas estradas desenroladas
Nas praças que transbordam
Escrevo o teu nome
Na lâmpada que se acende
Na lâmpada que se apaga
Nas minhas casas reunidas
Escrevo o teu nome
No fruto cortado em dois
Do espelho e do meu quarto
Na minha cama concha vazia
Escrevo o teu nome
No meu cão guloso e meigo
Nas suas orelhas erguidas
Na sua pata desajeitada
Escrevo o teu nome
No trampolim da minha porta
Nos objectos familiares
Na vaga do fogo bendito
Escrevo o teu nome
Em toda a carne consagrada
Na testa dos meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo o teu nome
Na janela das surpresas
Nos lábios atentos
Bem acima do silêncio
Escrevo o teu nome
Nos meus refúgios destruídos
Nos meus faróis desabados
Nas paredes do meu tédio
Escrevo o teu nome
Na ausência sem desejo
Na solidão nua
Nos degraus da morte
Escrevo o teu nome
Na saúde refeita
No risco desaparecido
Na esperança sem memória
Escrevo o teu nome
E pelo poder de uma palavra
Recomeço a minha vida
Nasci para te conhecer
Para te nomear
Liberdade.
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Paul Éluard (França,1895-1952)
(trad.CT/JPS)

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TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 21 Ted Kooser


AO FIM DE ANOS
Hoje, à distância, vi-te,
afastando-te, e sem um som
a face cintilante de um glaciar
escorregou para o mar. Um velho carvalho
tombou em Cumberlands, conservando apenas
uma mão cheia de folhas, e uma velha
que atirava milho às galinhas ergueu o olhar
por um instante. Do outro lado
da galáxia, uma estrela trinta e cinco vezes
maior que o nosso sol explodiu
e desapareceu, deixando uma pintinha verde
na retina do astrónomo
de pé na grande cúpula aberta
do meu coração sem ninguém a quem contar.
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SELECIONANDO UMA LEITORA
Primeiro, teria de ser bela,
e aproximar-se cautelosamente da minha poesia
no momento mais solitário de uma tarde,
com o cabelo ainda húmido no pescoço
de o ter lavado. Vestiria
uma gabardine velha, e suja
por não ter dinheiro que chegasse para a lavandaria.
Tirará os óculos, e ali
na livraria, folheará
os meus poemas, e depois pousará o livro
outra vez na prateleira. Dirá para si,
“Por este preço, posso mandar
lavar a gabardine.” E assim fará.

Ted Kooser ( EUA, 1939 - )
(trad. Cristina Tavares /José Pinto de Sá)

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 20 Robert Desnos




AO AMANHECER
A manhã desaba como uma pilha de pratos
Em milhares de cacos de porcelana e de horas
E de seixos
E de cascatas
Até sobre o balcão desta tasca muito pobre
Onde as estrelas persistem na noite do café.
Ela não é pobre
Aquela, no seu vestido de noite sujo de lama,
Mas rica das realidades da manhã,
Da embriaguez do seu sangue
E do perfume do seu hálito que nenhuma insónia pode alterar.
Rica de si mesma e de todas as manhãs
Passadas, presentes e futuras,
Rica de si mesma e do sono que a vence
Do sono rígido como um acaju
Do sono e da manhã e de si mesma
E de toda a sua vida que não se conta
Senão por manhãs, auroras deslumbrantes
Cascatas, sonos,
Noites vivas.
Ela é rica
Mesmo se estende a mão
E tem de dormir na fresca manhã
No seu vestido sujo
Num leito de deserto
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CANTO DO CÉU
A flor dos
Alpes dizia à concha: «tu brilhas»
A concha dizia ao mar: «tu ressoas»
O mar dizia ao barco: «tu tremes»
O barco dizia ao fogo: «tu cintilas»
O fogo dizia-me: «cintilo menos que os seus olhos»
O barco dizia-me: «tremo menos que o teu coração quando ela aparece
O mar dizia-me: «ressoo menos que o seu nome no teu amor»
A concha dizia-me: «brilho menos que o fósforo do desejo no teu sonho fundo»
A flor dos
Alpes dizia-me: «ela é bela»
Eu dizia: «ela é bela, ela é bela, ela é comovente».
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Robert Desnos (França, 1900-1945)
(trad.Cristina Tavares/José Pinto de Sá)
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TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 19 Mario Benedetti


DEFENDER A ALEGRIA
Defender a alegria como uma trincheira
defendê-la do escândalo e da rotina
da miséria e dos miseráveis
das ausências transitórias
e das definitivas
defender a alegria como um princípio
defendê-la do atordoamento e dos pesadelos
dos neutros e dos neutrões
das doces infâmias
e dos graves diagnósticos
defender a alegria como uma bandeira
defendê-la do raio e da melancolia
dos ingénuos e dos canalhas
da retórica e das paragens cardíacas
das endemias e das academias
defender a alegria como um destino
defendê-la do fogo e dos bombeiros
dos suicidas e dos homicidas
das férias e da opressão
da obrigação de estar alegres
defender a alegria como uma certeza
defendê-la da ferrugem e da sujidade
da famosa patine do tempo
do relevante e do oportunismo
dos proxenetas do riso
defender a alegria como um direito
defendê-la de deus e do inverno
das maiúsculas e da morte
dos apelidos e das mágoas
do acaso
e também da alegria.
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QUANDO ÉRAMOS CRIANÇAS
Quando éramos crianças
os velhos tinham uns trinta
um charco era um oceano
a morte suave e plana
não existia.
depois quando rapazes
os velhos eram gente de quarenta
uma lagoa era um oceano
a morte só
uma palavra
já quando nos casámos
os anciãos estavam nos cinquenta
um lago era um oceano
a morte era a morte
dos outros.
agora veteranos
já alcançámos a verdade
o oceano é por fim o oceano
mas a morte começa a ser
a nossa.
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........
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NÃO TE SALVES
Não fiques parado
à beira do caminho
não congeles o júbilo
não ames com indiferença
não te salves agora
nem nunca
não te salves
não te enchas de calma
não reserves do mundo
só um recanto tranquilo
não deixes cair as pálpebras
pesadas como sentenças
não fiques sem lábios
não adormeças sem sonho
não te penses sem sangue
não te julgues sem tempo
mas se
apesar de tudo
não puderes evitá-lo
e congelas o júbilo
e amas com indiferença
e salvas-te agora
e enches-te de calma
e reservas do mundo
só um recanto tranquilo
e deixas cair as pálpebras
pesadas como sentenças
e secas-te sem lábios
e adormeces sem sonho
e pensas-te sem sangue
e julgas-te sem tempo
e ficas parado
à beira do caminho
e salvas-te
então
não fiques comigo.
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Mario Benedetti (Uruguai, 1920 -2009)
(trad. Cristina Tavares /José Pinto de Sá)

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 18 Mary Oliver

Instruções para viver uma vida:
Presta atenção.
Maravilha-te.
Fala disso.
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DIA DE VERÃO
Quem fez o mundo?
Quem fez o cisne, e o urso preto?
Quem fez o gafanhoto?
Este gafanhoto, quer dizer –
o que saltou da erva,
o que está a comer açúcar na minha mão,
o que move as mandíbulas para a frente e para trás em vez de para cima e para baixo –
que olha em volta com os seus enormes e complicados olhos.
Agora ergue os pálidos antebraços e lava meticulosamente a cara.
Agora estala as asas e paira para longe.
Não sei exatamente o que é uma oração.
Mas sei estar atenta, sei como cair
na erva, como ajoelhar na erva,
como ser ociosa e abençoada, como vaguear através dos campos,
que é o que tenho feito todo o dia.
Diz-me, que mais devia eu ter feito?
Não morre tudo por fim, e demasiado cedo?
Diz-me, o que planeias fazer
com a tua única selvagem e preciosa vida?
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Uma vez alguém que eu amava deu-me
uma caixa cheia de escuridão.
Levei anos a perceber
que também isso era uma prenda.



Mary Oliver (EUA, 1935-2019)
(trad. Cristina Tavares /José Pinto de Sá)

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 17 Julio Cortázar



AS BOAS CONSCIÊNCIAS
És assim: inteligente, clara, refinada,
vives em harmonia com as pessoas, as coisas e as plantas
que elegeste devagar,
rejeitando sem ruído o que quebrava o ritmo diurno,
a calma das tuas noites.
Isso não significa que ignores este caos,
este fragor de sangue a que chamam século vinte.
Pelo contrário, segues de muito perto
coisas como o racismo, o apartheid e as multinacionais,
o sangue na Argentina no Chile no Paraguai e etcetera.
Todas as tardes às seis compras o Le Monde
E indignas-te sinceramente
porque tudo é violência, violação e mentira
em Dublim em Beirute em Santiago em Banguecoque.
E depois quando vêm a Paulita e o Juan e o Pepe
explicas-lhes com chá e torradas que isto não pode ser,
que como pode ser que isto seja assim, e a mesa
enche-se de protestos democráticos,
de migalhas humanistas e Direitos Humanos (cf. Unesco).
Todos estão de acordo e todos sentem
que estão do lado justo, que é preciso esmagar Pinochet,
mas curiosamente
nem eles nem tu fizeram nunca nada
para ajudar (digamos, deram dinheiro, solidarizaram-se
alguns com as campanhas de jornais),
porque lhes rouba a maior parte do tempo
esmagar o fascismo com perfeitas razões silogísticas
e sentimentos impecáveis.
É evidente que ler Le Monde
já é um combate frente aos que lêem o Figaro.
O importante é saber onde está a verdade
e repeti-lo e repeti-lo todos os dias
aos mesmos amigos no mesmo café.
Quase uma militância ou pouco menos,
quase um perigo porque às tantas
um fascista ouve-te e aí registam-te e pronto.
Oh, querida, já é tarde,
anda dormir, mas antes, claro,
as últimas notícias. Mataram
Orlando Letelier. Que horror, não é?
Isto não pode ser. Esta violência
tem de terminar.
(Toca o telefone é a Paulita
que acaba de saber.)
Dá gosto ver
como tu e a tua gente participam
da história.
Vais dormir tão mal, não é, o melhor é ficar a ouvir música
até que venha o sono dos justos.
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BLUES FOR MAGGIE
Bem vês
nada é sério nem digno de ser tomado em conta,
a brincar fizemo-nos todo o mal necessário,
bem vês, isto não é uma carta,
demo-nos esse mel da noite, os bares,
o prazer boca abaixo, os cigarros turvos
quando no céu raso treme a luz do alvorecer,
bem vês,
continuo a pensar em ti,
não te escrevo, de repente olho o céu, essa nuvem que passa,
e talvez tu além, no teu cais, olhes uma nuvem
e isso é a minha carta, algo que corre indecifrável e chuva.
A brincar fizemo-nos todo o mal necessário,
o tempo faz o resto, os ursinhos
dormem junto a um esquilo rasgado.
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Julio Cortázar (Argentina, 1914-1984)
(trad.Cristina Tavares /José Pinto de Sá)

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TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 16 Allen Ginsberg

AMÉRICA
América dei-te tudo e agora não sou nada.
América dois dólares e vinte e sete cêntimos 17 de Janeiro de 1956.
Não suporto o meu próprio espírito.
América quando acabarás com a guerra humana?
Vai-te foder mais a tua bomba atómica.
Não me sinto bem não me incomodes.
Não escreverei o meu poema enquanto não estiver em perfeito juízo.
América quando serás angélica?
Quando despirás a tua roupa?
Quando olharás para ti através do túmulo?
Quando serás digna do teu milhão de trotskistas?
América porque é que as tuas bibliotecas estão cheias de lágrimas?
América quando mandarás os teus ovos para a Índia?
Estou farto das tuas exigências insanas.
Quando poderei ir ao supermercado e comprar o que preciso com a minha beleza?
América no fim de contas tu e eu é que somos perfeitos e não o próximo mundo.
A tua maquinaria é demais para mim.
Deste-me vontade de ser santo.
Deve haver outra maneira de resolver esta zanga.
Burroughs está em Tânger acho que ele não volta isso é sinistro.
Estás a ser sinistra ou isto é algum tipo de piada?
Estou a tentar ir directo ao assunto.
Recuso-me a desistir da minha obsessão.
América pára de me empurrar sei o que estou a fazer.
América as flores da ameixeira estão a cair.
Faz meses que não leio os jornais, todos os dias alguém vai a julgamento por homicídio.
América sinto-me sentimental acerca dos operários industriais do mundo.
América eu costumava ser comunista quando era puto e não me arrependo.
Fumo marijuana sempre que tenho ocasião.
Sento-me em minha casa dias a fio a olhar para as rosas dentro do armário.
Quando vou a Chinatown embebedo-me e nunca me comem.
O meu espírito está decidido vai haver confusão.
Devias ter-me visto a ler Marx.
O meu psicanalista pensa que estou perfeitamente bem.
Não direi a Oração ao Senhor.
Tenho visões místicas e vibrações cósmicas.
América ainda não te disse o que fizeste ao Tio Max depois de ele vir da Rússia.
Estou a falar contigo.
Vais deixar que a tua vida emocional seja gerida pela revista Time?
Estou obcecado pela revista Time.
Leio-a todas as semanas.
A sua capa olha para mim de cada vez que me esgueiro diante da loja de doces da esquina.
Leio-a na cave da Biblioteca Pública de Berkeley.
Está sempre a falar-me de responsabilidade. Os homens de negócios são sérios. Os produtores de cinema são sérios. Todos são sérios menos eu.
Ocorre-me que sou a América.
Estou outra vez a falar para mim.
[…]

Allen Ginsberg, (EUA, 1926-1997)
(trad. Cristina Tavares /José Pinto de Sá)

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 15 Iman Mersal


CASA DOS ESPELHOS
Iremos juntos
ao parque de diversões.
Irás ver-te mais alto que a tamareira do teu pai
e estarei de pé ao teu lado torcida e enfezada.
Sem dúvida riremos muito
e a piedade espalhar-se-á entre nós.
Cada um saberá
Que ambos carregamos às costas
infâncias privadas
de visitas a parques de diversões.
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ECG
Eu devia ter sido médica
para poder rastrear o ECG
com os meus próprios olhos,
e confirmar que o coágulo
era uma simples nuvem
que romperia em lágrimas normais
quando suficiente calor lhe fosse dispensado.
Mas não sou útil a ninguém,
e o meu pai que não pode dormir na sua cama
dorme profundamente em cima de uma mesa
numa vasta sala.
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AINDA BEM
Ombros de voluntários
carregaram o homem da cama vizinha
para o cemitério público.
Ainda bem para ti.
A morte não consegue repetir o seu feito
no mesmo quarto, na mesma noite.
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PORQUE É QUE ELA VEIO
Porque é que ela veio para o Novo Mundo, esta múmia, este tema
de espectáculo
dormindo no seu ornamento completo de gaze cinzenta,
uma vida imaginária numa vitrine de museu?
Acho que a mumificação é contrária à imortalidade
porque um corpo preservado nunca será parte de uma rosa.
A múmia não escolheu a migração, mas aqueles que esperam em
longas filas
em consulados e casas construídas noutros países
ainda sonham em regressar quando se tornarem cadáveres.
- Tem de nos levar para lá!
São as instruções que deixam em testamento penduradas
ao pescoço dos filhos
como se a morte fosse uma identidade inacabada
que apenas amadurece no talhão funerário da família.
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Iman Mersal (Egipto, 1966 - )
(tradução Cristina Tavares/José Pinto de Sá)

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 14 Robert Frost



NENHUM OURO PERMANECE
O primeiro verde da Natureza é ouro,
O seu tom mais difícil de manter.
A primeira folha é uma flor;
mas só por uma hora.
Depois folha esmorece em folha.
Assim o Éden caiu em desconsolo.
Assim a aurora se afunda para o dia.
Nenhum ouro permanece.
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UM PÁSSARO MENOR
Tenho desejado que um pássaro voasse para longe,
E não cantasse todo o dia junto à minha casa;
Da porta, tenho batido palmas para o afugentar
Quando me pareceu que não suportava mais.
Em parte a culpa deve ter sido minha.
O pássaro não podia ser acusado do seu tom.
E claro que deve haver algo de errado
Em querer silenciar qualquer canção.
.
Robert Frost (EUA, 1874 – 1963)
(trad. Cristina Tavares/José Pinto de Sá)

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 13 Nayyirah Waheed


fendeste o oceano ao
meio para aqui estares.
não encontraste nada que te queira
- imigrante
........
não presto atenção ao
fim do mundo.
já acabou para mim
muitas vezes
e começou de novo de manhã
........
sangro todos os meses.
mas não morro.
como posso não ser mágica.
- a mentira

Nayyirah Waheed (EUA, ?)
(trad. Cristina Tavares /José Pinto de Sá)

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 12 Octavio Paz

MADRUGADA
Rápidas mãos frias
retiram uma a uma
as vendas da sombra
Abro os olhos
ainda
estou vivo
no centro
de uma ferida ainda fresca.
........
Sob a tua clara sombra
vivo como a chama ao ar,
em tensa aprendizagem de estrela.
.........
DIZER, FAZER
Entre o que vejo e digo,
Entre o que digo e calo,
Entre o que calo e sonho,
Entre o que sonho e esqueço
A poesia.
Desliza entre o sim e o não:
diz
o que calo,
cala
o que digo,
sonha
o que esqueço.
Não é um dizer:
é um fazer.
É um fazer
que é um dizer.
A poesia diz-se e ouve-se:
é real.
E mal digo
é real,
dissipa-se.
Assim é mais real?
Ideia palpável,
palavra
impalpável:
a poesia
vai e vem
entre o que é
e o que não é.
Tece reflexos
e destece-os.
A poesia
parece olhos nas páginas
parece palavras nos olhos.
Os olhos falam
as palavras vêem,
Os olhares pensam.
Ouvir
os pensamentos,
ver
o que dizemos
tocar
o corpo
da ideia.
Os olhos
fecham-se.
As palavras abrem-se.

Octavio Paz (México, 1914-1998)
(trad. Cristina Tavares/José Pinto de Sá)

12 abril, 2020

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 11 Margaret Atwood

O MOMENTO
O momento em que, depois de muitos anos
de trabalho árduo e uma longa viagem
estás de pé no meio do teu quarto,
casa, meio hectare, quilómetro quadrado, ilha, país,
sabendo por fim como lá chegaste,
e dizes, possuo isto,
é o mesmo momento em que as árvores soltam
de ti os braços macios,
os pássaros tomam de volta a sua linguagem,
as falésias racham e colapsam,
o ar reflui de ti como uma vaga
e não consegues respirar.
Não, murmuram. Não possuis nada.
És um visitante, repetidamente,
escalando a colina, plantando a bandeira, proclamando.
Nunca te pertencemos.
Nunca nos encontraste.
Foi sempre ao contrário.


........


UMA VISITA
Longe vão os dias
em que conseguias andar sobre a água.
Em que conseguias andar.
Longe vão os dias.
Só resta um dia,
aquele em que estás.
A memória não é amiga.
Só te consegue dizer
o que já não tens:
uma mão esquerda que consegues usar,
dois pés que caminham.
Todos os artefactos do cérebro.
Olá, olá.
A mão que ainda funciona
agarra-se, não deixa ir.
Aquilo não é um comboio.
Não há grilo nenhum.
Não entremos em pânico.
Falemos de machados,
quais são os bons,
os muitos nomes de madeira.
É assim que se constrói
uma casa, um barco, uma tenda.
Não serve de nada; a caixa de ferramentas
recusa-se a revelar os seus verbos;
a grosa, a plaina, a lima, a sovela,
revertem para metais soturnos.
Reconheces alguma coisa? Disse eu.
Alguma coisa familiar?
Sim, disseste. A cama.
Vale mais olhar o riacho
que corre pelo chão
e é feito de luz do sol,
a floresta feita de sombras;
vale mais olhar a lareira
que agora é uma praia.

Margaret Atwood (Canadá, 1939 - )

(trad. Cristina Tavares/José Pinto de Sá)

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 10 James Baldwin

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 10

A imaginação
cria a situação
e, então, a situação
cria a imaginação.
Também pode, é claro,
ser ao contrário:
Cristóvão Colombo foi descoberto
por aquilo que encontrou.
........


O meu relatório de progresso
Sobre a viagem ao palácio da sabedoria
é desencorajador.
Faltam-me certas aptidões indispensáveis.
Além disso, parece
que pus na mala as coisas erradas.


........
Senhor,
quando enviares a chuva
pensas nisso um pouco,
por favor?
Não
te entusiasmes
com o som da água a cair,
com a maravilhosa luz
na água a cair.
Eu
estou por baixo dessa água.
Cai com muita força
e a luz
Cega-me
para a luz.

James Baldwin (EUA, 1924 - 1987)  (tradução  Cristina Tavares /José Pinto de Sá)

10 abril, 2020

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 9 Anne Sexton


A NEGRA ARTE
Uma mulher que escreve sente demais,
esses arrebatamentos e presságios!
Como se ciclos e crianças e ilhas
não bastassem; como se lutos e mexericos
e legumes nunca bastassem.
Ela pensa que pode avisar as estrelas.
Uma escritora é essencialmente uma espia.
Querido amor, eu sou essa mulher.
Um homem que escreve sabe demais,
tais feitiços e fetiches!
Como se erecções e congressos e produtos
Não bastassem; como se máquinas e galeões
e guerras nunca bastassem.
Com mobília usada faz uma árvore.
Um escritor é essencialmente um vigarista.
Querido amor, tu és esse homem.
Sem nunca nos amarmos a nós próprios,
odiando até os nossos sapatos e chapéus,
amamo-nos um ao outro, querido, querido.
As nossas mãos são azul-claras e delicadas.
Os nossos olhos estão cheios de confissões terríveis.
Mas quando nos casamos,
os filhos partem com repugnância.
Há demasiada comida e não sobra ninguém
Para comer toda a estranha abundância.

........


EM CELEBRAÇÃO DO MEU ÚTERO
Toda a gente em mim é uma ave.
Bato as minhas asas todas.
Queriam eliminar-te
mas não o farão.
Disseram que eras imensuravelmente vazia
mas não és.
Disseram que estavas doente para morrer
mas estavam enganados.
Cantas como uma miúda de escola.
Não estás despedaçada.
Doce peso,
em celebração da mulher que sou
e da alma da mulher que sou
e da criatura central e sua delícia
canto para ti. Ouso viver.
[…]


Anne Sexton (EUA, 1928-1974)   (Tradução de Cristina Tavares e José Pinto de Sá)

09 abril, 2020

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 8 Anne Perrier


Quanto mais o tempo se faz sombrio
E o caminho árido
Mais eu encho
O meu lenço de estrelas
........
Escondem-se, diz-se, para morrer.
Eu digo
Que nunca nenhum pássaro morre
Mas que muito alto, entre a espuma
E os remoinhos de astros, os seus cantos
de planeta em planeta saltam
para a fonte.
........
… Era loucura
Querer eternizar
A dança e a estação florida

Anne Perrier (Suíça, 1922-2017) Tradução de Cristina Tavares e José Mota Pinto de Sá

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 7 Dambudzo Marechera


.
.
UM FARRAPO DE IDENTIDADE
Quando é que esta lua se descasca dos meus poemas?!
Esta zona de penumbra que vai da escola inglesa
À minha voz de barata?
A formiga empoleirada no grão de areia
Pouco se apercebe do meu titânico dilema de artista
E só tem olhos para o pé que ergo.
A abelha na sua errância doce peganhenta, se me avista
Dispara uma tangente zumbindo o seu escárnio.
A madrugadora andorinha, no seu voo seco,
Mal dispensa um olhar instantâneo às minhas penas.
O varredor dá de ombros, atira o fardo concreto
Para o camião dos salários e dos preços em alta;
O aprendiz da fábrica fecha o macacão
E aguarda o Chamamento – sirene da fábrica;
O carteiro pedala a sua ronda; o soldado
Beija a namorada e corre a cumprir ordens.
Todos parecem conhecer seus eus
Mas eu como um louco insisto em decifrar
As marcas num farrapo de papel em branco
As marcas que vão ser o poema atrás deste poema.

........

NOTAS PARA HAMLET
Agora ou nunca está aí outra vez. Será preciso eu
Encarar a outra face da lua?
O momento exige decisão. Toda a minha
História é avessa a isso – Deixem-me estar!
Assim, de novo adio e tremo. Talvez
O impaciente problema desanime face às minhas
Exímias vacilações.

Dambudzo Marechera (Zimbabwé, 1952-1987) tradução de Cristina Tavares e José Pinto de Sá

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07 abril, 2020

TRADUÇÕES DA QUARENTENA - 6 Jacques Prévert

TEMPO PERDIDO
Diante da porta da fábrica
o trabalhador de súbito pára
o bom tempo puxou-o pelo casaco
e quando ele se volta
e olha para o sol
muito vermelho muito redondo
sorrindo no seu céu de chumbo
pisca o olho
familiarmente
Diz lá camarada Sol
não achas
que é uma estupidez
dar um dia assim
a um patrão?

........

NA FLORISTA
Um homem entra na florista
e escolhe flores
a florista embrulha as flores
o homem mete a mão no bolso
para procurar o dinheiro
o dinheiro para pagar as flores
mas ao mesmo tempo pousa
subitamente
a mão no coração
e cai
Ao mesmo tempo que cai
o dinheiro rola pelo chão
e depois as flores caem
ao mesmo tempo que o homem
ao mesmo tempo que o dinheiro
e a florista fica ali
com o dinheiro que rola
com as flores que se estragam
com o homem que morre
evidentemente tudo isso é triste
e é preciso que ela faça qualquer coisa
a florista
mas ela não sabe o que fazer
ela não sabe por que ponta começar
há tantas coisas a fazer
com aquele homem que morre
aquelas flores que se estragam
e aquele dinheiro
aquele dinheiro que rola
que não pára de rolar.

Jacques Prévert (França, 1900-1977) tradução de Cristina Tavares e José Pinto de Sá