Foi o dia em que um polido agente da autoridade
nos veio buscar a casa para nos interrogar.
Alguém havia assaltado o posto médico
e o medo da vizinhança apontara para nós.
Não sabíamos de nada, mas o nosso luto
(morrera-nos o mundo há pouco tempo)
dizia o contrário. Éramos muito jovens,
tínhamos a boca ferida de insultos. A nossa vida,
coitada, lia muitos livros de aventuras políticas,
sentia-se capaz, dizia, de dar a volta ao mundo
numa barca de cortiça. Não lhe demos confiança.
Após o depoimento ainda passei pela biblioteca
e à noite festejámos a libertação da nossa inocência.
Nunca mais pedimos sal aos vizinhos.
José Miguel Silva, Vista para um Pátio seguido de Desordem
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