Certos espíritos amantes do mistério pretendem que os objectos conservam qualquer coisa dos olhos que os viram, que os monumentos e os quadros só nos aparecem sob o véu sensível que lhes foi tecido pelo amor e pela contemplação de tantos adoradores, ao longo de muitos séculos. Esta quimera seria verdadeira se a transpusessem para o domínio da realidade exclusiva de cada um, para o domínio da sua sensibilidade própria. Sim, nesse sentido, e apenas nesse sentido (mas que é muito maior), uma coisa que em tempos observámos, se tornarmos a vê-la, traz-nos, juntamente com o olhar que nela poisámos, todas as imagens que então o enchiam. É que as coisas - um livro como outro qualquer sob a sua capa vermelha -, logo que vistas por nós, tornam-se em nós algo de imaterial, da mesma natureza de todas as nossas preocupações ou das nossas sensações desse tempo, e misturam-se indissoluvelmente com elas.
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, volume 2